Há um mês, Senegal perdia Papa Bouba Diop, o seu próprio Maradona
Em 2010, Senegal inaugurava o Monumento da Renascença Africana, na capital Dacar. Com custo de US$ 27 milhões à época e 49m de altura, a mais alta estátua do continente – e mais alta que o Cristo Redentor, por exemplo -, celebrava os 50 anos da independência do país.
A demonstração literal de grandeza de Senegal pode ter sido uma relembrança de algo que sequer havia deixado a memória da população. Melhor dizendo, algo que definitivamente jamais sairia dela.
Oito anos antes, Senegal chocou o planeta do futebol ao vencer a França logo em sua primeira partida em uma Copa do Mundo. Porém, a abertura da edição de 2002 era muito mais do que uma das grandes surpresas da história da competição. Era um pico na autoestima de um país que foi colonizado por séculos e conseguira 42 anos antes se tornar independente... justamente da França.
42 anos foi o período também que viveu o herói da batalha futebolística de Seul. Autor do gol da vitória senegalesa sobre os franceses em 31 de maio de 2002 na Coreia do Sul, Papa Bouba Diop morreu em 29 de novembro de 2020, enquanto o mundo ainda chorava a perda de outra figura lendária das Copas: Diego Armando Maradona, o grande nome do título argentino em 1986, em que teve atuação épica contra a Inglaterra nas quartas de final. Mais do que uma classificação, uma redenção de uma população ressentida pela Guerra das Malvinas ocorrida quatro anos antes.
As histórias, a vida e a carreira do ‘Dios’ do futebol são incomparavelmente maiores em relação às escritas por Papa Bouba Diop como atleta. Não há discussão em relação a isso, mas há quanto a outro aspecto.
“(O Papa Bouba Diop) representa para a autoestima de Senegal um sentimento de grandeza maior do que o Maradona representa para a Argentina. É que a gente está perto e tem mais notícias (da Argentina)”, analisa Odair Marques da Silva, autor do livro “Atlas Geocultural da África” e do site africaatual.com.br.
Maradona derrotou a Inglaterra com a genialidade e malandragem para despertar um orgulho nacional que se misturou com a ânsia por sucesso esportivo de uma seleção que brigava pelo título.
Diop foi menos brilhante neste sentido. O gol da vitória foi na fase de grupos e para uma seleção que não brigaria pela taça, embora tenho ido até as quartas de final, igualando o melhor desempenho africano na história do torneio – Diop ainda anotou outros dois gols na competição e permanece como maior artilheiro senegalês em Copas do Mundo. Mas ele levou brilho a um país e a um continente que aprendeu a ser ofuscado pela história contada a partir dos europeus, como os franceses, que colonizaram cerca de 40% da África, como lembra Odair.
Para o autor, o gol de Diop, assim como a vitória de 2002, “transcende o Senegal e o futebol. É uma marca de autonomia, de independência, de força, de resistência e de vitória.”
“Ele significa a possibilidade de cada pessoa conquistar o sucesso, um sentimento de fortalecimento de identidade. Ele representa um pertencimento a um país que quer se afirmar no mundo”, declarou o autor, que ainda mencionou o crescimento de Senegal fora do futebol.
De acordo com relatório do World Bank em março deste ano, “a expansão econômica do Senegal vem acelerando e crescendo consistentemente acima de 6% ao ano desde 2014”. O país tem um plano de se tornar uma economia emergente em 2035.
"O Senegal está se aproximando da terceira década do século 21 com tremendas promessas e oportunidades", disse Nathan Belete, diretor do Banco Mundial para o Senegal, conforme apontado pelo relatório.
Na última semana, a DP World, empresa do ramo de operação portuária, informou que assinou um acordo com o governo do país africano para o desenvolvimento de um porto de águas profundas em Ndayane por um valor de US$ 1,127 bilhão, o que representa o maior valor da empresa no continente. A informação foi publicada pela agência Reuters.
Em meio a este crescimento econômico, Senegal voltaria à Copa do Mundo em 2018. A segunda participação dos Leões de Teranga, no entanto, foi bem menos promissora, com a queda em um grupo que tinha Colômbia, Japão e Polônia por conta da maior quantidade de cartões amarelos do que os asiáticos. A seleção foi treinada por Aliou Cissé, único técnico negro do último Mundial e que foi companheiro de Diop no elenco de 2002.
De qualquer forma, o momento do país é inegavelmente interessante no futebol. A seleção foi vice-campeã da Copa Africana de Nações de 2019, igualando a sua melhor campanha (2002). Além disso, já está classificada para a próxima edição e contando com Sadio Mané (astro do Liverpool e um dos melhores atacantes do mundo), Kalidou Koulibaly (zagueiro do Napoli avaliado em 65 milhões de euros), Édouard Mendy (goleiro titular do Chelsea), entre outros atletas.
“Eu não creio que seja coincidência, uma influencia (questão) na outra”, opina Odair a respeito dos crescimentos de Senegal dentro e fora das quatro linhas.
O impacto que o futebol tem lhe dá muito poder sobre as pessoas. Um gol pode mudar o dia de alguém ou até a autoestima de um país inteiro. Bouba Diop, dono de um sorriso tão marcante, fez as lágrimas de alegria de 2002 virarem de tristeza em 2020.
“Estava sempre com um sorriso largo no rosto, sempre muito brincalhão, com essa lembrança que quero ficar dele”, conta Roger Guerreiro, que atuou com o ex-meio-campista no AEK Atenas em 2010-11, temporada em que foram campeões da Copa da Grécia.
Diop também ganhou a Copa da Inglaterra com o Portsmouth em 2007-08 e foi campeão suíço com o Grasshoppers em 2000-01, além de ter defendido clubes como Fulham, Lens, West Ham, entre outros. Pela seleção, foram mais de 60 partidas.
"Ele era muito patriota quanto à seleção, sentia um carinho muito grande por defender a seleção. Sempre falou que gostava muito de quando era convocado pela seleção", diz Roger, que hoje atua na várzea de São Paulo e conduz um projeto de treinamento de fundamentos para crianças e funcional com movimentos do futebol para adultos.
O carinho de Diop pelo seu país foi recíproco. O presidente do país, Macky Sall, afirmou que a perda era “imensa” e disse que um museu de um estádio para 50 mil pessoas que está sendo construído fora de Dakar levará o nome do ex-jogador, a quem foi destinada ainda uma premiação póstuma: a Ordem Nacional do Mérito.
"Saiba que você sempre permanecerá em nossos corações, ainda que tenha nos deixado sem dizer adeus", escreveu Sadio Mané, um dos diferentes nomes famosos que prestaram homenagem ao ex-meio-campista.
Talvez a partida sem uma despedida seja uma forma simbólica de Papa Bouba Diop mostrar que nunca tenha partido de fato. Seus quase 2m de altura não se aproximaram dos 49m do Monumento da Renascença Africana e seu futebol nunca se aproximou ao de Maradona, mas isso não o impediu de ser igualmente gigante para o seu país.
Há um mês, Senegal perdia Papa Bouba Diop, o seu próprio Maradona
COMENTÁRIOS
Use a Conta do Facebook para adicionar um comentário no Facebook Termos de usoe Politica de Privacidade. Seu nome no Facebook, foto e outras informações que você tornou públicas no Facebook aparecerão em seu cometário e poderão ser usadas em uma das plataformas da ESPN. Saiba Mais.