Entre plies e batalhas: a história da primeira brasileira negra do Dance Theatre of Harlem
Seja pelo sorriso largo presente em cada frase ou pelos movimentos delicados que fazem parecer fácil "flutuar" no balé, apenas observar Ingrid Silva já seria apaixonante. Ouvi-lá é uma verdadeira aula de motivação. Ao cruzar as fronteiras de um Brasil imenso, onde a desigualdade é gritante e a pobreza está tão presente e insiste em impedir que muitos tenham acesso aos direitos básicos de todo cidadão, Ingrid tornou-se uma vencedora nos Estados Unidos.
Aliás, como sabemos, são milhares os brasileiros que chegam à terra do Tio Sam à procura de recomeços. Imigrantes que estudam, trabalham e movimentam a economia do País nos mais variados setores, dando um duro danado para ajudar familiares que seguem no Brasil ou que vivem por perto. Com seus quase 10 milhões de habitantes, Nova Iorque é casa do mundo, uma capital universal, cantinho também da Ingrid.
Em meio a tanta gente, fui apresentada à história dessa jovem de 28 anos, que assim como os compatriotas, também chegou aos EUA em busca de chances que talvez não tivesse em solo brasileiro. Mas esse enredo vai além disso... É a história exemplar de uma bailarina que veio de um país que não tem tradição na dança clássica e em que se pode contar nos dedos quais foram os principais nomes que se destacaram no balé.
E ao romper a primeira barreira de persistir naquilo que é para poucos, Ingrid virou a primeira bailarina negra do Brasil a chegar no "Dance Theatre of Harlem", importante companhia de dança de Nova Iorque conhecida pela diversidade cultural e racial de seu elenco.
Tudo começou em meados de 1997. Quando ainda era moradora de Benfica, subúrbio do Rio de Janeiro, aos oito anos, Ingrid ingressou nas aulas de balé.
"Um vizinho nosso disse que na Vila Olímpica da Mangueira iria abrir uma aula de balé. Eu era tão novinha que não tinha muita noção sobre o que estava fazendo. Foi com 12 anos que passei a respirar balé, treinar muito. A conversa com a minha professora da época, Edy Diegues, mudou minha vida e o que eu queria para ela".
Quando a rotina de treinos ficou mais intensa no Brasil, a mãe de Ingrid teve que parar de trabalhar. As bolsas de estudo em companhias de dança ajudavam no sustento da casa (ela recebeu bolsas para a Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e o Centro de Movimento Deborah Colker). Enquanto a maioria se divertia na rua, Ingrid ensaiava duro, viajava por todo o País dançando, até que uma grande chance bateu à sua porta, aos 18 anos.
"Quando surgiu a oportunidade de vir para os Estados Unidos, pensei muito no que minha mãe sempre me dizia: 'filha, eu te crio para o mundo!', mas claro que foi um baque grande essa mudança por não falar inglês. Nem sei como consegui chegar em casa no meu primeiro dia em Nova Iorque. Um anjo da guarda me explicou como pegar o metrô, como me mover por aqui. Eu não era a menina que tinha dinheiro suficiente para um táxi do aeroporto, que passaria pela Times Square para admirar as luzes a noite... era a menina que precisava economizar para comer com um sentimento de medo pelo desconhecido, um começo de uma luta."
Ao chegar no Dance Theater of Harlem, a sensação de que até hoje se lembra com detalhes...
"A primeira coisa que pensei foi U-A-U, que lugar maravilhoso! E que mensagem linda eu ter chegado até aqui....uma companhia reconhecida, que hoje é super diversa e tem dois brasileiros. Essa diversidade foi muito importante e me fortaleceu!"
Ingrid tem se dedicado a projetos que vão além da dança. Nos quase dez anos morando nos Estados Unidos, participou de turnês mundiais, foi fotografada por nomes conhecidos, integrou campanhas de marcas globais e tem visto em sua própria trajetória no balé uma oportunidade de desenvolver ações que estimulem a autoestima das mulheres e a valorização da dança, como declara orgulhosa.
" A Ingrid, hoje, é uma ativista, feminista... ainda penso muito no quanto eu queria ver o Brasil oportunizando outras meninas a seguirem um caminho parecido com o que percorri. Não conheço nenhuma bailarina brasileira negra em companhias nacionais. A gente teve que sair do Brasil para correr atrás desse sonhos. Falta oportunidades, falta pessoas que criem coragem de seguir até o final por diversos motivos... ou a família não apoia ou, às vezes, não tem dinheiro, não tem condições, e isso é muito complicado, e mesmo as que têm, não acreditam nesse sonho que sim, se realiza. Acho que tudo que passei pode ser usado para mudar a vida de muita gente, inclusive a minha."
É nesse momento que a expressão tranquila de Ingrid ganha um ar preocupado. É que o assunto incomoda a bailarina, incomoda quem é apaixonado por arte e vê a desvalorização dela no Brasil. "Faltam projetos que valorizem a dança. O Dançando para não Dançar, projeto que fiz parte, foi criado há mais de vinte anos e mesmo assim, hoje passa por dificuldades sem patrocínios. Fico pensando para onde essas crianças vão? A escola oferece a educação, mas falta arte no Brasil, falta ajudar a tirar muita gente da rua."
Quando a sorte sorriu para Ingrid, ela agradeceu com trabalho. Conforme os sonhos foram sendo realizados ao longo de quase uma década fora, a figura importante e grande incentivadora de Ingrid ainda não pôde ver a filha se apresentar no exterior. Com olhos marejados, de quem sabe das batalhas diárias que enfrenta e como supera a imensa saudade de casa, Ingrid me conta que quer muito trazer a mãe para acompanhar um de seus espetáculos.
"Isso é algo que quero muito. A presença dela aqui. Minha mãe é a responsável por tudo o que construí, dá muita saudades, mas muitas coisas me conectam ao Brasil ainda. Por exemplo, a novela! Eu sou louca por novela brasileira... ah, tem comida também.... a gente faz feijoada para os amigos quando dá."
A menina de Benfica conta, também, como se sente honrada de servir de inspiração para outras mulheres.
"Recebo muitas mensagens nas redes sociais, falando do meu cabelo, da minha pele, da inspiração para outras mulheres negras. Recentemente, soube que as crianças nas escolas no Brasil estavam fazendo trabalhos sobre mim (no mês da consciência negra no Brasil). Eu nunca imaginei na vida ser pauta de ninguém. Quando eu estudava, não tinha ninguém como exemplo e hoje me tornei um desses exemplos."
Não é para menos... o ano de 2017 teve outro marco significativo para Ingrid: ela foi capa da Pointe Magazine, uma das revistas de balé mais famosas dos Estados Unidos. "Estampar uma capa tem todo o glamour de ser clicada, de tirar fotos lindas, mas a mensagem que mais gosto é a de ser a primeira negra brasileira na capa da revista. Isso foi muito revolucionário. Acho que é muito importante porque demorou tanto tempo, tantos anos para que isso acontecesse".
Com o mesmo sorriso que me recebeu ao abrir a porta, Ingrid agradece a oportunidade de falar com o blog, entre uma lambida e outra da cachorrinha de estimação, Frida, inquieta enquanto a "mãe" está concentrada em nossa conversa. Ingrid lembra-se do vídeo do qual participou recentemente no núcleo do espnW Latino e que compartilho aqui com vocês:
Bravo, Ingrid!
De Benfica para um mundo sem fronteiras!
Entre plies e batalhas: a história da primeira brasileira negra do Dance Theatre of Harlem
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