No menor país da América, treinador brasileiro inicia 'missão impossível' em busca de vaga na Copa
São apenas 53 mil habitantes em 261 km2 de terra. Não há país soberano menor na América, em população e território, do que São Cristóvão e Névis. A vida é calma e pacata, como em uma cidade do interior do Brasil. As praias são belíssimas e o governo local, nos últimos meses, combateu a pandemia de Coronavírus com seriedade, baseado na ciência. Foram confirmados apenas 44 casos positivos de COVID-19 em todo período, sem qualquer óbito, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.
São Cristóvão e Névis, desde 1983 quando conquistou a independência dos britânicos, faz parte dos Reinos das Comunidades das Nações, logo tem a rainha Elizabeth II como monarca. De qualquer modo, o estado é independente e mantém a economia forte para uma nação tão pequena - 45º melhor PIB per capita no mundo, pouco superior a 19 mil dólares. O futebol, no entanto, ainda precisa evoluir muito.
O futebol local é semiprofissional, ou seja, os atletas possuem um emprego além de jogarem bola. Há um campeonato nacional, com dez times e nome pomposo (Premier League), mas a seleção jamais alcançou qualquer feito notório. A maior conquista pode ser considerada a classificação para a terceira fase das eliminatórias da Concacaf para a Copa de 2006. Terminou massacrada por México e Trinidad e Tobago, que avançaram, e ainda perdeu ambos jogos para São Vicente e Granadinas. Além disso, há um vice-campeonato da extinta Copa do Caribe em 1997.
A Associação de Futebol de São Cristóvão e Névis, para tentar mudar essa realidade, deu um passo importante em fevereiro deste ano, ao contratar o técnico brasileiro Léo Neiva. Carioca, 43 anos, larga experiência na África e na América Central, o treinador aceitou o desafio de conduzir a seleção são-cristovense em uma missão quase impossível, ainda mais em pleno cenário de pandemia no mundo.
"A preparação não está sendo ideal devido ao COVID. As restrições da ilha são muito fortes e exigentes. Não pudemos, por exemplo, fazer amistosos internacionais, porque qualquer seleção que viajasse para lá teria que fazer quarentena de 14 dias, e nós também se jogássemos fora. A preparação começou há duas semanas, apenas". Léo se refere ao país como "lá", porque a seleção de São Cristóvão e Névis irá estrear, contra Porto Rico, nas eliminatórias para o Mundial de 2022 na República Dominicana, como mandante. "Nós viemos para a República Dominicana para podermos chamar os jogadores internacionais. Perdemos o mando de campo, que seria em São Cristóvão. Viemos jogar em campo neutro, como se fosse uma bolha, e conseguimos chamar os atletas que atuam na Inglaterra. Mesmo assim já perdi três, dois por COVID e um por lesão", completa.
Quando a Jamaica surpreendeu o mundo e se classificou para a Copa do Mundo de 1998, uma mudança importante aconteceu no futebol caribenho. Renê Simões, treinador brasileiro dos Reggae Boys, foi um dos precursores na busca por jogadores de dupla nacionalidade. Ou seja, filhos e netos de caribenhos que migraram para a América do Norte ou Europa. "Encontrei bar man, motorista de táxi, desempregados, semiamadores no futebol. Os jogadores treinavam só à tarde e não eram pagos mensalmente. Criamos o projeto de adoção de atletas por empresas, pagávamos mil dólares mensais. A empresa podia usar a imagem do jogador. Com isso, criamos a seleção permanente e viajamos a 28 países em todos os continentes, internacionalizando a experiência dos atletas. Depois, já na terceira fase de classificação, trouxemos três jogadores da primeira divisão da Inglaterra, filhos de jamaicanos, mas que nasceram lá", lembra Renê Simões. "Hoje, a seleção jamaicana tem quase todo o elenco jogando fora do país. Esse tem que ser o caminho de outras seleções".
O principal jogador são-cristovense é o meio-campista Romaine Sawyers, de 29 anos, que defende o West Brom na Premier League. "Quando eu tinha 14 anos eles contataram o West Brom para verificar se havia uma ligação. Havia, mas naquela época, o West Brom não queria que eu desse esse passo. Entre 16 e 19 anos apareci em listas da seleção inglesa. Pela perspectiva do clube, como um produto, é melhor se você joga pela Inglaterra, acrescenta mais valor", contou Sawyers em entrevista de 2017 ao portal MyLondon.
Em 2012, porém, ele deu o passo seguinte. O jogador aceitou a convocação de São Cristóvão e Névis para as eliminatórias olímpicas, pelo time sub-23. Na sequência passou a ser convocado, naturalmente, para a seleção principal e se tornou uma referência para o futebol no país. O meio-campista, pelas regras impostas pelo governo britânico devido à pandemia de Coronavírus, não pôde se apresentar ao técnico Léo Neiva e desfalcará a equipe contra Porto Rico e Bahamas, segundo adversário na rodada da data FIFA, fora de casa.
Para a estreia contra os porto-riquenhos nesta quarta-feira, Léo Neiva já sabe como vai armar o time. "Duas linhas de quatro, bloco médio, vou esperar o adversário, até porque Porto Rico está se preparando há muito tempo. Fizeram três amistosos internacionais e, em níveis físico e tático, estão à frente. Busco um futebol mais vertical, minha ideia é chegar no campo adversário com o menor número de passes possíveis, até para não me expor". A missão é complicadíssima, pelo nível de um dos adversários do grupo. "Trinidad e Tobago é a mais forte, com nome internacional, seus jogadores competem nos torneios mais pesados. Além disso, possuem experiência de Copa do Mundo e estão com um trabalho desde setembro. A Guiana tem um técnico brasileiro, Márcio Máximo, que está no cargo há dois anos, com trabalho consolidado". Bahamas é a quinta seleção no grupo F da primeira fase das eliminatórias da Concacaf, onde apenas o vencedor de cada chave segue em frente.
São Cristóvão e Névis mantém scouts fixos na Inglaterra, no Canadá e na Escócia. A busca por atletas que possuam origem familiar no país é constante. "Acabaram de mapear um jogador que é capitão do Leicester sub-23. Já vai ser chamado para a próxima rodada. Menino de 23 anos, imagina a base e a filosofia de trabalho que ele tem? Totalmente diferente do jogador local. Meu objetivo é diminuir essa diferença. O jogador local tem habilidade natural, absurda, mas a parte tática é muito pobre. Jogam um futebol muito velho. A primeira linha de quatro não sobe, jogadores ficam estáticos. Parece o futebol inglês dos anos 1960, 70", relata Neiva. Dos 23 convocados finais, 11 são locais e 12 internacionais. "Pra ser titular, temos apenas dois ou três locais. Meu objetivo é desenvolver o jogador local, para que ele tenha chance de jogar pela seleção e também para tirar o atleta de fora da zona de conforto".
Léo Neiva, que terá o preparador de goleiros brasileiro Gerhard Benthin Jr. ao lado no desafio caribenho, possui uma trajetória curiosa no futebol. Ex-jogador profissional, parou cedo de jogar e iniciou a carreira na comissão técnica do América, no Rio, em 2007, time que tinha Júnior Baiano, entre outros. Foi para a África do Sul contratado para trabalhar na base do Platinum Stars e ficou lá por dois anos. A partir daí acumulou experiências na Tanzânia, em Mianmar, na Tailândia e na Jamaica. No futebol jamaicano, foi campeão nacional no comando do Montego Bay United na temporada 2015-16.
A chegada a São Cristóvão e Névis aconteceu há apenas um mês, sendo que as duas primeiras semanas foram de quarentena. Na prática, teve pouco tempo com os jogadores locais e conheceu, pessoalmente, os internacionais nos únicos treinos antes da partida contra Porto Rico, já na República Dominicana. "A gente consegue acompanhar a minutagem do jogador de fora, passes certos, passes errados, finalizações... Inclusive está vindo um jogador de Honduras, que seria opção para banco, porque o titular é da Inglaterra. Mas pelo acompanhamento do Wyscout (sistema profissional de scout no futebol), sei que ele está sem jogar há muito tempo, então vai dar espaço ao jogador local, que substituirá o 'inglês'", afirma o treinador, cujo contrato vai até fevereiro de 2022.
Atualmente, essa busca por atletas de dupla nacionalidade se tornou padrão para diversas seleções do Caribe. Curaçao é um bom exemplo. A seleção é comandada pelo veterano Guus Hiddink, de três Copas do Mundo (Holanda, 1998; Coreia do Sul, 2002; Austrália, 2006), e possui bom nível internacional graças ao elenco formado, basicamente, por jogadores que atuam na Europa, como os irmãos Leandro (Cardiff) e Juninho Bacuna (Huddersfield), além de Vurnon Anita, revelado pelo Ajax e atualmente no RKC Waalwijk-HOL, e Cuco Martina, lateral de 31 anos, ex-Everton, atualmente sem clube. A Jamaica, já tão citada nesta história, convenceu, recentemente, Andre Gray (Watford) e Michail Antonio (West Ham) aceitaram a convocação da seleção caribenha.
"Quando o jogador tem o DNA do país, ou seja, é filho de pai ou mãe local, eu aceito. Quando lhe é dado o passaporte, parabéns, que jogue, mas não gosto. Mesmo que tenha vivido no país por algum tempo. Falta o sangue correndo na veia", defende Renê Simões, que após a passagem de sucesso pela seleção jamaicana entre 1994 e 2000, comandou Trinidad e Tobago. Pelo atual formato de eliminatórias, Costa Rica, Honduras, México, Estados Unidos e a própria Jamaica entram apenas na terceira e última fase, com as três equipes que avançarem da segunda - composta pelo vencedores dos seis grupos iniciais. As oito seleções jogarão entre si, turno e returno, com as três primeiras garantindo vaga no Catar e a quarta para o playoff entre confederações.
São Cristóvão e Névis, diante dessa "missão impossível, sonha. Para uma nação tão pequena, possui boa estrutura, com campos de futebol em todas escolas e clubes, além de dois estádios maiores. O são-cristovense possui habilidade, mas ainda carece de maior compreensão técnica e tática do jogo. O futebol é o esporte mais popular entre os 53 mil habitantes. Léo Neiva apresentou aos dirigentes a ideia de criação de seleções de base, do sub-11 ao sub-20, já que atualmente trabalham apenas com a última categoria. Ele é parte integrante do sonho de conseguir algo além. "Disse para os jogadores que não adianta ganhar apenas os dois primeiros jogos. Podemos surpreender".
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