Pela primeira vez, expatriados são maioria nas cinco grandes ligas europeias
Em 26 de dezembro de 1999, em pleno Boxing Day inglês, o Chelsea chamou a atenção de todos no país. Pela primeira vez na Inglaterra, um time era escalado sem qualquer jogador nacional, composto exclusivamente de 11 estrangeiros entre os titulares. Na época, o diretor do clube, Colin Hutchinson, afirmou que o Chelsea era um "clube continental jogando futebol na Europa". Os Blues venceram o Southampton naquele dia por 2 a 1, com dois gol do atacante norueguês Tore Andre Flo. De lá para cá, escalações com 100% de atletas estrangeiros se tornaram comuns pelo continente.
A própria terminologia mudou. Com a Lei Bosman em vigor desde dezembro de 1995 e o crescimento da União Europeia, apesar do Brexit, as fronteiras caíram também no futebol. Com isso, diversos jovens trocam de clube e país ainda na base, tendo toda, ou parte, da formação como jogador de futebol fora de seu país natal. Na prática, portanto, são estrangeiros, mas não entram na categoria de expatriados no futebol. Essa diferenciação é importante para entender os dados divulgados pelo CIES Football Observatory, centro de estudos do futebol localizado na Suíça. De acordo com o levantamento demográfico da entidade, pela primeira vez na história há mais expatriados nas cinco grandes ligas europeias do que jogadores formados nos clubes locais.
Premier League, LaLiga, Bundesliga, Serie A e Ligue 1 possuem 50,1% de expatriados nos elencos. O estudo analisou 31 ligas de primeira divisão na Europa, contabilizando 12.141 jogadores de 473 clubes. Para serem incluídos no levantamento, os atletas precisavam constar na relação principal de suas equipes em 1o de outubro deste ano e terem jogado ao menos uma partida nesta temporada ou em cada uma das duas últimas. Goleiros reservas são as exceções a esta regra e também entraram na contagem. A média obtida em todo continente é menor (41,9%), mas retoma o índice de 2019 pré-pandemia, após pequena queda no ano passado (41,2%). Quando o CIES Football iniciou esse levantamento demográfico em 2009, a média nestas 31 ligas nacionais era de 34,8% de expatriados.
Base x Mercado
Há o efeito econômico e a correlação com a formação de novos jogadores. Campeonatos onde os clubes têm maior poder de investimento buscam mais talento estrangeiro e acabam dando menos espaço para atletas da base. Nas cincos grandes ligas europeias, por exemplo, apenas 14,2% dos elencos, na média, são de jogadores formados no próprio clube - para entrar nesta categoria, o atleta precisa ter passado ao menos três temporadas entre 15 e 21 anos no clube atual; a média do continente ficou em 18%. Nas dez ligas analisadas com pior ranking na UEFA, o índice sobe para 22,4% e os expatriados caem para 33%.
Outra consequência direta é a manutenção a longo prazo de jogadores no elenco. Ingleses, espanhóis, alemães, italianos e franceses trocam, em média, 31,6% de seus atletas a cada temporada, sem contar a promoção dos jovens da base. Na parte de baixo do ranking, a movimentação de mercado sobe para 42,5% - Ekstraklasa (Polônia), Allsvenskan (Suécia), Premier League (Belarus), Super Liga (Sérvia), Eliteserien (Noruega), A PFG (Bulgária), Super Liga (Eslováquia), 1.SNL (Eslovênia), NB I (Hungria) e Veikkausliiga (Finlândia). A pandemia provocou, na temporada passada, redução do índice no geral em toda Europa, caindo de 43,2% em 2019 para 40,9% em 2020 e 40,4% neste ano.
Exemplos práticos
Há extremos em todas pesquisas deste tipo. O clube, por exemplo, com a maior porcentagem de expatriados no elenco fica na Grécia, onde a média na liga nacional é de 60,2%. Não há na Europa equipe com mais jogadores formados fora do próprio clube do que o Aris, com 88,5%. Três brasileiros fazem parte do elenco da equipe de Tessalônica: o goleiro Denis, ex-São Paulo e Ponte Preta, o zagueiro Fabiano, ex-Chapecoense, Cruzeiro e Palmeiras, e o volante Lucas Sasha, que surgiu como promessa na base do Corinthians. O clube é uma Torre de Babel, com atletas oriundos de quase todos os continentes do planeta, com exceção da Oceania.
"Falamos em inglês. Inevitavelmente alguns grupos se formam, principalmente o pessoal que vem da África e que fala francês. Depois tem muitos argentinos e espanhóis, que ficam falando espanhol. Somos em três brasileiros e falamos o nosso português, mas quando todo mundo quer se juntar e tem algo para falar, tem que ser em inglês. Bom para nós, que acabamos aprendendo um pouco de cada língua. Sou um cara muito curioso, gosto de aprender outras culturas, pergunto bastante", conta Lucas Sasha, jogador do Aris desde 2019. Antes, o meio-campista passou por CSKA Sofia e Ludogorets, na Bulgária, e pelo Hapoel Tel Aviv, em Israel.
Esse meio multi-cultural de um vestiário como do Aris promove muitas trocas entre os atletas, mas também acaba gerando algumas barreiras. "Realmente há muita diferença cultural, são culturas completamente diferentes, religiões diferentes, costumes diferentes. O mais importante é saber respeitar o limite do próximo. Digo isso para mim mesmo, porque sou um cara muito brincalhão e sei que muitas vezes uma brincadeira que eu faça com uma pessoa, não pode ser feita com outra. Aprendi isso na marra, brincando e a pessoa falando 'assim não'. É necessário respeitar o limite de cada um, saber até onde pode ir. Não apenas com brincadeiras, mas no dia a dia com os mais variados assuntos. Como no mundo todo, não é mesmo? Saber respeitar o espaço de cada um", completa Lucas.
Representantes das cinco grandes ligas estão muito próximos do Aris também. A Udinese perdeu a primeira posição apenas por 0,5%, enquanto o Atlético de Madrid ficou com 82,6% de média, bem acima do padrão de LaLiga (38,1%). Mais casos notórios são de Paris Saint-Germain (75%), Lille (76%) e Sevilla (64,3%). Por outro lado, somente três dos 473 times pesquisados não possuem qualquer jogador expatriado em seus elencos atuais: Paksi, da Hungria, Desna, da Ucrânia, e o mais óbvio de todos, pela política de utilização apenas de jogadores de origem basca, Athletic Bilbao. Em termos de ligas nacionais, a Sérvia é quem menos dá espaço para expatriados, somente 16,2% de todos atletas nos 16 clubes da primeira divisão.
Quando o assunto é utilização da base, nenhum clube supera o Zilina, quarto colocado no último Campeonato Eslovaco. Atualmente, 79,2% do elenco é formado por atletas formados em suas categorias menores, valor 56% acima do que se constata na Eslováquia, que mesmo assim apresenta a menor média de idade nas equipes, apenas 24,53. Nas cinco grandes ligas, também sem surpresas, o líder é o Athletic Bilbao com índice de 56%; entre todos os campeonatos analisados, a maior média ficou com a Noruega (29,2%) e a menor com a Turquia (8,5%). Há também 39 clubes que não possuem jogadores da própria base, e o que mais chamou atenção neste quesito foi a presença de três representantes de LaLiga: Getafe, Granda e Elche. O último caso tem gerado bastante polêmica na Espanha; o Elche pertence ao empresário argentino Christian Bragarnik, que tem investido muito em jogadores de seu próprio país e contrantando, inclusive, sócios de seu negócio - caso de Darío Benedetto.
Estabilidade merengue
Desde a temporada 2014-15, quando Toni Kroos trocou o Bayern pelo Real Madrid, o meio-campo merengue tem sido formado pelo alemão ao lado de Casemiro e Luka Modric. Além dos três, outros atletas importantes permanecem no elenco madridista há muito tempo, como Marcelo desde 2007 e Karim Benzema desde 2009. Tudo isso colabora sensivelmente para que a média de permanência no atual elenco do Real seja 4,21 anos por jogador. O valor é bem superior ao que se tem em LaLiga (1,66). Ainda na Espanha, mais especificamente no país Basco, o Athletic aparece novamente no levantamento do CIES Football com índice de 4,56 anos por atleta. Alguns exemplos opostos também podem ser obtidos território espanhol; o Sevilla, com sua política de muitas contratações e vendas, obteve média de 2,11, enquanto o Elche, já citado acima, ficou com 1,84.
Exemplos de estabilidade na Itália e na Alemanha são Sassuolo (4 anos) e Borussia Mönchengladbach (4,54 anos), enquanto em todo continente nenhum clube supera o CSKA Moscou e sua média de 4,83 anos por jogador no elenco atual. Mário Fernandes, brasileiro naturalizado russo, por exemplo, está no clube moscovita desde 2012, quando foi negociado pelo Grêmio por 15 milhões de euros. Sem falar, é claro, no goleiro Igor Akinfeev, de 35 anos, formado no próprio CSKA, desde 2002 na equipe profissional e recordista histórico de partidas. O extremo oposto ao CSKA Moscou também está no Leste Europeu, com o glorioso Dinamo Brest, de Belarus, que mantém seus jogadores no elenco em média por apenas um ano.
Há situações distintas também e de fácil explicação. Quando analisados os índices na comparação com a média do respectivo campeonato, três clubes da Premier League aparecem no top 10: Brentford, Norwich e Watford. São justamente os três que conquistaram o acesso para a Premier League nesta temporada e, com isso, fizeram mais investimentos em reforços. Isso fez com que a média de permanência no clube dentro do atual elenco caísse bastante. Já que o assunto é a Premier League, há ainda o caso do Burnley que possui a maior média de idade dos jogadores do atual elenco entre todos 473 clubes analisados, com 29,91 anos.
Processo migratório
No final das contas, mais uma vez o futebol reflete a sociedade. Esse alto fluxo migratório entre jogadores também acontece nos mais variados setores e níveis sociais, por motivos diversos e nem sempre valoráveis. Em 2016 a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o Pacote Global para Migração. Naquele ano, através da Declaração de Nova Iorque, como ficou conhecido o documento, os objetivos do acordo internacional foram divulgados: tratar todos os aspectos da migração internacional, incluindo as questões de tipo humanitário, de desenvolvimento e de direitos humanos, contribuir para a governança mundial e fortalecer a cooperação sobre o tema, criar un marco legal para uma cooperação internacional integral que beneficie aos migrantes à mobilidade humana e seguir o plano marcado pela Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e o Plano de Ação de Adis Abeba da Terceira Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento.
Na prática, porém, como temos visto nos últimos anos, a situação migratória na Europa tem provocado desastres humanitários. O futebol também tem suas histórias ruins envolvendo migração. Como quase sempre acontece no esporte mais praticado do mundo, os olhares globais se voltam para as transferências milionárias e os grandes clubes. No entanto, bem além das centenas de milhões de euros que circulam nas mãos de empresários, dentro de todos os números levantados pelo CIES Football há rostos e relatos de muita dificuldade também.
Vicente de Paula, lateral brasileiro de 25 anos, defende atualmente o VPK-Ahro Shevchenkivka, na segunda divisão ucraniana. Em entrevista neste ano ao podcast Futebol no Mundo, ele lembrou das dificuldades que enfrentou em suas primeiras experiências europeias, quando passou pelo Bylis Ballsh, do futebol albanês em 2020. "Antes de ir para a Albânia me alertaram sobre alguns riscos, mas quando você tem um sonho, acaba ficando cego. Quer apenas jogar, não quer saber mais de nada. Quando cheguei lá foi horrível. Fui contratado através de outro agente, que me prometeu muitas coisas. Ele e o presidente. Assim que eu pisei na Albânia foi tudo diferente, começando pelo contrato. Prometeram apartamento, salários em dia e nada disso aconteceu. Foi muito constrangedor pra mim. O presidente mentiu em tudo".
O que aconteceu com Vicente acontece com vários outros atletas pelo mundo. "Quando cheguei no clube, o alojamento era horrível, e o combinado era que eu ficasse lá por três dias até alugarem meu apartamento. Não havia aquecedor no alojamento e lá faz muito frio. Conversei com um colega do time, argentino, que me levou para morar com ele. Fiquei um mês na casa dele, que me ajudou muito, inclusive com dinheiro. Até hoje não me pagaram os salários", completa. Porém, o pior ainda estava por vir, quando recebeu a notícia de que não havia mais esperança na cura de sua mãe. "Os médicos avisaram que minha mãe tinha mais uma semana de vida, por causa do câncer. Conversei com o presidente para voltar ao Brasil e poder ver minha mãe, o último adeus. O presidente foi muito ignorante, disse que eu não poderia voltar ao Brasil porque não retornaria depois à Albânia". Pouco depois disso, durante a pandemia e através de uma agência de jogadores no Brasil, que acionou a embaixada brasileira, ele conseguiu deixar a Europa.
Em maio deste ano, eram 1287 jogadores brasileiros espalhados pelo mundo. Mais do que qualquer outra nacionalidade.
Pela primeira vez, expatriados são maioria nas cinco grandes ligas europeias
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