Olimpíadas: a história e curiosidades por trás da música de Tchaikovsky que virou o hino dos russos
Um escândalo de doping fez com que a Rússia fosse excluída de grandes competições esportivas em 2019 por um período de quatro anos. Sem poder participar dos Jogos Olímpicos nesta e na próxima edição, o país tem visto seus atletas disputarem suas respectivas modalidades com a bandeira do “Comitê Olímpico da Rússia”.
Em caso de medalha de ouro ou no momento da apresentação de um time para um esporte coletivo, o hino russo não pode ser tocado, o que fez com que fosse escolhida uma outra música para tal momento: um trecho do Concerto para Piano e Orquestra nº 1 de Piotr Ilitch Tchaikovsky.
Este, na verdade, é um 'plano B', uma vez que a ideia inicial era executar a 'Katyusha', uma música com grande identificação na luta dos russsos contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Porém, a Corte Arbitral do Esporte (CAS) acabou rejeitando.
“O painel do CAS considera que 'qualquer hino vinculado à Rússia' se estende a qualquer música associada ou com ligações à Rússia, o que incluiria Katyusha,” afirmou o tribunal em comunicado à Associated Press em março.
Bom, ouvir a música de Tchaikovsky não é grande novidade para quem tem acompanhado os Jogos. Porém, qual é exatamente a relação desta composição com a Rússia? E qual é o tamanho dele para seu país natal, para sua cultura e para a história da música?
O blog conversou com dois especialistas para ir a fundo sobre a obra e o compositor que tem representado a Rússia, a atual quinta colocada no ranking de medalhas de Tóquio 2020, com 17 de ouro (já tocou muito Tchaikovsky em Tóquio!).
Tchaikovsky (1840-1893) é obviamente reconhecido como um dos grandes compositores da história pelo seu talento musical, mas um aspecto que o fez se destacar ainda mais foi o fato de seu alcance ter ido além das fronteiras nacionais. “Tchaikovsky coloca a Rússia no mapa da música erudita no século 19”, diz Marcus Held, professor de História da Música do Conservatório de Tatuí.
“Na mesma época que apareceu (Fiódor) Dostoiévski e (Leon) Tolstói, apareceu o Tchaikovsky também. Então ele é o primeiro grande compositor russo a ficar internacional. É como a assinatura musical da Rússia, e lá ele é tão popular quanto fora, se não for mais”, declarou Irineu Franco Perpetuo, tradutor russo e crítico musical.
A visão é compartilhada por Held. "O que o destaca de outros compositores russos é que ele tem uma atuação destacada no âmbito do ocidente", afirmou. "(Tchaikovsky) representa muito bem a música do tempo dele e também o trânsito entre o ocidente e oriente".
Esse impacto no mundo, aliás, é sentido até hoje. De acordo com publicação em dezembro de 2020 do serviço de streaming de música Spotify, Tchaikovsky é o artista russo mais popular entre os seus usuários fora da Rússia, com uma audiência mensal de cerca de 5,1 milhões ao redor do mundo.
Por outro lado, Perpetuo pontua que a música ainda não está no mesmo patamar que outra arte no país. “Para os russos a mais forte é a literatura, e o pai fundador da literatura para eles é (Aleksandr) Púchkin”.
Simone Biles volta para os Estados Unidos após as Olimpíadas e é ovacionada e recebida com festa e comoção
Uso do piano e ‘revolução’ do balé
Colocar a Rússia no mapa da música clássica foi conseguido em boa parte por conta do impacto que o compositor teve na história do balé, com obras como “Quebra Nozes” e “O Lago dos Cisnes”.
“Até o Tchaikovsky, balé era para compositor de segundo time, então você pega um trilheiro para colocar uma música para os bailarinos. Tchaikovsky foi o primeiro compositor de estatura que resolveu compor balé. Depois dele vieram grandes balés na música russa”, disse Perpetuo, citando "A Sagração da Primavera" e "O Pássaro de Fogo", de Igor Stravinsky, como exemplos.
Outra marca muito importante do legado de Tchaikovsky foi o uso do piano, ainda mais em um século que o instrumento teve enorme impacto, como explicou Held.
“Tchaikovsky soube aproveitar muito bem esse desenvolvimento do instrumento enquanto estrutura mesmo, o piano adquiriu no século 19 a forma do piano de cauda como conhecemos hoje. Ele não foi inventado no século 19, mas foi consolidado dessa forma que esperamos: piano preto, gigante, todo brilhante, posicionado de lado, não por questão acústica, mas para mostrar quem toca.”
Junto à genialidade do artista e do contexto favorável ao uso do instrumento, deve-se mencionar também a tradição local. “Se tivesse Olimpíada de piano, a Rússia não desceria dos três primeiros postos (risos). É algo que eles se orgulham muito”, declarou Perpetuo.
Antes da final das Olimpíadas, Daniel Alves fala em jogar a Copa do Mundo de 2022: 'Sonho não mudou'
Inicialmente rejeitado, concerto virou um colosso e representa a globalização da Olimpíada
O concerto que tem sido o hino temporário dos russos é sem dúvida nenhuma uma das grandes obras escritas por este compositor tão aclamado, mas isso não significa que ela não tenha tido rejeição em seu início – inclusive por parte da pessoa a quem foi dedicada.
Nikolai Rubinstein era um pianista, regente, crítico e também compositor a quem Tchaikovsky propôs o concerto, mas reagiu negativamente à obra. É válido destacar que Rubinstein era amigo pessoal de Tchaikovsky e, inclusive, o colocou como professor no Conservatório de Moscou e o apoiou até o fim da vida, como destacou Perpetuo. Posteriormente, o pianista se arrependeria de sua avaliação inicial a respeito da composição.
No fim, a obra escrita entre novembro de 1874 e fevereiro de 1875 estreou em 25 de outubro de 1875 em Boston e foi tocada pelo alemão Hans von Bulow, que viria a ser maestro da Filarmônica de Berlim.
Dessa forma, é possível colocar dois pontos que refletem a obra de Tchaikovsky com os Jogos Olímpicos. Primeiramente, o alcance de sua música. Trata-se de um compositor russo que teve um de seus mais famosos trabalhos sendo tocado pela primeira vez nos Estados Unidos por um alemão. O segundo ponto é a superação de uma forte crítica que não impediu que o concerto prosperasse.
“E eu pegaria ainda um terceiro aspecto. Porque não é uma obra orquestral, é uma obra para um instrumento solista e orquestra, e o solista é o atleta da música. A escrita do piano é muito difícil. Até hoje, tanto tempo já passou da estreia, todo mundo já escutou, e é muito complicado tocar este concerto. Tem uma coisa atlética também, no solista do piano, de esforço físico, de alto virtuosismo. Um pianista de concerto é como um atleta de alta performance, inclusive ele tem que estudar muitas horas por dia para não baixar o rendimento dele”, afirmou o crítico musical.
Por falar em atleta/músico virtuoso, o 'hino' dos representantes russos no Japão é uma versão executada por Denis Matsuev, um dos pianistas mais renomados do mundo na atualidade e que já esteve no Brasil.
“Eu organizei três versões com cada uma delas durando um minuto e 30 segundos e devo dizer que todas são resumidas”, declarou Matsuev à agência de notícias russa TASS em maio.
Matsuev, aliás, foi embaixador da Copa do Mundo de 2018 na Rússia, evento que contou com o Concerto para Piano e Orquestra nº1 de Tchaikovsky como parte da cerimônia de abertura.
Quase 130 anos depois de sua morte, o compositor continua sendo um sinônimo de Rússia por onde seu nome passa. Seja em uma sala de concerto ou em um pódio olímpico.
Bom, já que estamos falando de pódio...
Na história da música/arte da Rússia, Tchaikovsky está no pódio?
Irineu Franco Perpetuo: Tchaikovsky pega medalha. Na música, mesmo um compositor como o Stravisnky, que seria candidato a medalha de ouro, ele reconheceria que o Tchaikovsky teria que estar lá, todos meio que olhariam e falariam: 'esse cara é importante'. Acho que ele poderia pegar uma medalha de prata, a de ouro na Rússia sempre vai aos escritores, a força da literatura lá... não dá. E acho que acabaria sendo o Puchkin, a maior figura cultural, mas acho que o Tchaikovsky pegaria uma merecida medalha de prata.
Marcus Held: Se a gente pensar do ponto de vista da longa duração da história da música russa, ele vai estar em primeiro lugar, sem dúvida nenhuma. Aí o segundo e terceiro lgares serão disputados pelos compositores do século 20.
Entre o impacto/relevância das obras de Tchaikovsky, o Concerto para Piano e Orquestra nº1 está no pódio? Se sim, com qual medalha?
Irineu Franco Perpetuo: Sim, está no pódio. A medalha de ouro teria que ser um dos balés - acho que “O Quebra Nozes”. Eu daria prata para o Concerto, e bronze para a “Sexta Sinfonia – Patética”.
Marcus Held: Seria pódio. Se a gente colocar um lugar do pódio para a música sinfônica, um para a música de câmara e outro para os concertos para instrumento e orquestra, o concerto para piano facilmente ocuparia, mas seria uma disputa muito acirrada com o Concerto para Violino e Orquestra. Seria a prata e o ouro com os dois.
Olimpíadas: a história e curiosidades por trás da música de Tchaikovsky que virou o hino dos russos
COMENTÁRIOS
Use a Conta do Facebook para adicionar um comentário no Facebook Termos de usoe Politica de Privacidade. Seu nome no Facebook, foto e outras informações que você tornou públicas no Facebook aparecerão em seu cometário e poderão ser usadas em uma das plataformas da ESPN. Saiba Mais.