Muito além da Copa do Mundo: por que o futebol do Canadá vive momento único em sua história
John Herdman tinha pouco menos de 11 anos de idade quando a Argentina despachou a sua Inglaterra nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, com Diego Armando Maradona fazendo dois dos gols mais icônicos da história do futebol.
Possivelmente ele não tinha noção naquela época do quanto o futebol representaria em seu futuro e do quanto sua vida teria ligação com aquele Mundial, mas por conta de outra seleção.
Em 1986, o Canadá disputava sua primeira e única edição da Copa...até este domingo, quando goleou a Jamaica por 4 a 0 e carimbou o passaporte ao Catar. Após 32 anos, Herdman seria o responsável por colocar a seleção novamente em um Mundial, um feito que representa muito mais do que uma classificação em si. O país vive um momento histórico em seu futebol, e muito por conta do treinador.
Herdman treinou a seleção canadense feminina entre 2011 e 2018 e conquistou as duas primeiras medalhas olímpicas da história da seleção (bronze em Londres e no Rio de Janeiro), encaminhando um trabalho que seria de ouro em Tóquio sob o comando de Bev Priestman.
Quando assumiu a seleção masculina no começo de 2018, o inglês pegou um Canadá no 94º lugar do ranking da Fifa e com desempenhos discretos no cenário local, sendo que não chegava à fase final das eliminatórias desde o qualificatório para a Copa do Mundo de 1998.
Em fevereiro, a seleção estabeleceu seu recorde ao alcançar a 33ª colocação da lista da Fifa. Tal feio foi acompanhado de uma semifinal de Copa Ouro em 2021, o que não ocorria desde 2007, além da campanha memorável nas eliminatórias da Copa, passando invicto diante das tradicionais equipes dos Estados Unidos e México.
Na visão de Adam Jenkins, comentarista da emissora canadense OneSoccer, a situação é diferente quando falamos das equipes feminina e masculina. Ainda que ambas estejam vivendo um período muito próspero simultaneamente, a qualidade do time das mulheres já está consolidada há bastante tempo. Não à toa, depois de ter ficado de fora da Copa do Mundo inaugural em 1991, a seleção esteve nas sete seguintes, conseguindo inclusive um quarto lugar em 2003.
"Eu não acho que seja qualquer segredo que a seleção feminina sempre foi um modelo para os nossos programas nacionais. Uma enorme fundação foi lançada por membros do passado, que nem sempre necessariamente teve os resultados que garantiam sua qualidade", afirmou o especialista ao blog (leia a entrevista na íntegra ao fim do texto).
Com Herdman, o exemplo do futebol feminino foi implementado no masculino. "Ele introduziu a cultura e a mentalidade competitiva que levou o sucesso das mulheres nos Jogos Olímpicos".
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Não existe o momento certo para comemorar conquistas no futebol, mas é possível dizer que esse período glorioso do futebol canadense se deu em um contexto muito propício. Afinal, o país sediará o Mundial masculino ao lado de Estados Unidos e México em 2026, o que fará com que a cultura de Copa seja vivida de forma bastante intensa para um país que oferece bons motivos para acreditar que talvez não ficará mais 32 anos longe do Mundial.
Os resultados da seleção masculina são acompanhados por uma geração muito promissora, com talentos consolidados em um altíssimo nível, como são os casos de Alphonso Davies e Jonathan David no Bayern de Munique e Lille, respectivamente. Além disso, o país tem uma liga nacional nova (a quarta edição da Canadian Premier League começará em abril), além de contar com Vancouver Whitecaps, Montreal e Toronto FC disputando a MLS – o último, inclusive, foi campeão em 2017 e vice em 2019.
"O futebol sempre foi uma parte da vida esportiva do canadense. Estou certo de que há alguma análise estatística para sustentar isso, mas há muitos jovens atletas que têm seu primeiro sabor de esporte coletivo no futebol por volta dos 3, 4 anos de idade. No passado, minha opinião é de que não houve muitas opções profissionais diretamente visíveis a estes jogadores, eles eventualmente mudariam para outros esportes onde acreditavam que haveria mais caminho para se tornar profissional", afirmou Jenkins.
"Isso mudou um pouco com a Major League Soccer e seus três clubes canadenses, mas como comentarista principal da Canadian Premier League e tendo a chance de interagir com seus oito clubes e torcedores quase que diariamente, eu não acho que houve uma liga/um momento que tenha afetado tanta mudança para o bem quanto a CPL. Agora muitos mercados têm um clube local para apoiar e ver que eles podem realmente aspirar a jogar. Isso só melhorará à medida que mais clubes forem adicionados, e a equipe profissional feminina há muito tempo esperada e, eventualmente, a liga, também forem adicionadas."
O crescimento e as maiores possibilidades do futebol local podem ser potencializados por um país conhecido por sua miscigenação e troca cultural devido a grande influência da imigração. Davies, grande nome da seleção, nasceu de pais liberianos em um campo de refugiados em Gana; Jonathan David nasceu nos Estados Unidos e tem origem haitiana; Stepehen Eustáquio, outro nome fundamental na classificação à Copa, tem origem portuguesa, assim como o zagueiro Steven Vitória; já o goleiro Milan Borjan nasceu na antiga Iugoslávia. Estes são apenas alguns de tantos casos.
“Alphonso Davies é um dos exemplos mais expressivos, mas longe de ser o único, de canadenses que imigraram para aqui e foram crescidos, desenvolvidos e moldados por este país. Eles têm orgulho de sua herança, mas tem orgulho também de ser canadense e vestir a ‘Maple Leaf’ internacionalmente.”
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Aliás, o futuro indica que não faltarão grandes oportunidades para os canadenses competirem em um alto nível internacional, uma realidade que há pouco tempo era bem diferente.
“O Canadá é a própria mostra do que é um trabalho bem feito, um processo de trabalho”, afirmou o técnico da Costa Rica, Luis Fernando Suárez, antes do confronto com o Canadá nesta semana. O treinador lembrou que em outubro de 2012 ele estava à de Honduras e conseguiu uma vitória por 8 a 1 sobre os canadenses.
Naquela equipe derrotada houve uma testemunha ocular do processo pelo qual passaria a seleção: Atiba Hutchinson. Hoje capitão da equipe, o volante de 39 anos viu as eliminatórias serem ainda mais especiais por um motivo individual, ao ultrapassar Julian de Guzman (89 jogos) como atleta que mais vezes defendeu a seleção masculina na história – atualmente ele tem 94 confrontos.
Este, aliás, não foi o único recorde quebrado na campanha. Autor de um dos gols sobre a Jamaica neste domingo, Cyle Larin chegou a 24 gols e ampliou ainda mais sua vantagem como maior artilheiro da história da equipe masculina, feito que alcançou ao superar Dwayne De Rosario (22) recentemente.
Por falar em recordes, Christine Sinclair tornou-se no começo de 2020 a maior artilheira de seleções (feminina ou masculina) ao superar Abby Wambach – atualmente, a campeã olímpica tem 188 gols.
No fim, os recordes individuais acabam por ser o complemento de algo muito maior que o futebol canadense está vivendo. Se a seleção feminina conseguiu os resultados que tanto faltavam para coroar o seu trabalho, a equipe masculina se vê diante da década mais empolgante de sua história. E John Herdman pode se sentir parte influente de ambas as histórias.
Confira abaixo a entrevista na íntegra com Adam Jenkins, comentarista da emissora canadense OneSoccer:
Três medalhas olímpicas seguidas com a seleção feminina (ouro em Tóquio) e esta incrível campanha com a seleção masculina nas eliminatórias para a Copa do Mundo. Quais razões explicam este sucesso?
Eu não acho que seja qualquer segredo que a seleção feminina sempre foi um modelo para os nossos programas nacionais. Uma enorme fundação foi lançada por membros do passado, que nem sempre necessariamente tiveram os resultados que garantiam sua qualidade.
Há muitas áreas que você pode apontar, e tem a ligação entre as duas, e uma das mais óbivas conexões é John Herdman. John, como você vai se lembrar, era o técnico da seleção feminina por quase uma década entre 2011 e 2018, antes de ele ter assumido como técmico da seleção masculina após Octavio Zambrano. Ele introduziu a cultura e a mentalidade competitiva que levou o sucesso das mulheres nos Jogos Olímpicos, e finalmente o ouro ao qual Bev Priestman as guiou em Tóquio.
O timing foi fantástico. Com o anúncio do Canadá como uma das sedes da Copa do Mundo de 2026, houve um um objetivo tangível para aspirar, e o esporte no Canadá deu saltos desde então. Esta campanha de qualificação em particular pode parecer um pouco adiantada para muitos na mídia e fora da equipe, mas este atual grupo tem uma energia diferente e motivação sobre eles. Eles sabiam que tinham isso neles. Agora, a Concacaf e o resto do mundo do futebol estão aprendendo sobre isso também.
Quão presente o futebol está na vida dos canadenses? O interesse cresceu, seja para jogar ou assistir? As crianças estão ligadas ao jogo?
O futebol sempre foi uma parte da vida esportiva do canadense. Estou certo de que há alguma análise estatística para sustentar isso, mas há muitos jovens atletas que têm seu primeiro contato com o esporte coletivo no futebol por volta dos 3, 4 anos de idade. No passado, minha opinião é de que não houve muitas opções profissionais diretamente visíveis a estes jogadores, eles eventualmente mudariam para outros esportes onde acreditavam que haveria mais caminho para se tornar profissional.
Isso mudou um pouco com a Major League Soccer e seus três clubes canadenses, mas como comentarista principal da Canadian Premier League e tendo a chance de interagir com seus oito clubes e torcedores quase que diariamente, eu não acho que houve uma liga/um momento que tenha afetado tanta mudança para o bem quanto a CPL. Agora muitos mercados têm um clube local para apoiar e ver que eles podem realmente aspirar a jogar. Isso só melhorará à medida que mais clubes forem adicionados, e a equipe profissional feminina há muito tempo esperada e, eventualmente, a liga, também forem adicionadas.
Ver superestrelas globais como Christine Sinclair, Janine Beckie, Jessie Fleming, Alphonso Davies, Jonathan David, etc. empurrou isso ainda mais adiante, e eu não prevejo que haja uma mudança de rumo.
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Considerando que o Canadá irá jogar duas Copas do Mundo masculinas em sequência e o sucesso das mulheres nos Jogos Olímpicos, como essa realidade poderia ser um ponto de virada na cultura do futebol no país? Como você imagina o futebol no Canadá em dez anos?
Indo a partir do meu ponto anterior, eu acho que o momento está em um ponto no Canadá que nunca foi visto antes. O Canadá competindo em uma Copa do Mundo de novo, pela primeira vez desde 1986, irá inspirar outra geração. E isso está em cima do que a seleção feminina fez por essa geração engajada também. Honestamente, parece a todo vapor à frente. O Canadá está mostrando que pertence ao topo da Concacaf, e, com as estrelas jovens e o núcleo atual se destacando, o país acredita que merece estar lá perenemente como o México e os Estados Unidos.
Você poderia analisar quanto a qualidade do jogo mudou nos últimos anos? Não apenas dos jogadores, como também das equipes.
Eu diria que, como o jogo virou mais global e se tornou mais acessível, você está vendo muitas táticas diferentes e estilo de futebol entrarem em jogo no Canadá. Herdman nasceu e cresceu na Inglaterra, se desenvolveu na Nova Zelândia e agora implementou seus anos de experiência em diferentes estilos de futebol na identidade canadense.
Além disso, tendo mais jogadores envolvidos desde uma idade mais jovem e permanecendo no futebol competitivo por mais tempo, levou a mais talento. E e agora o surgimento de verdadeiras estrelas globais que são orgulhosamente canadenses. Os canadenses são mais habilidosos e completos do que nunca.
Você vê uma conexão entre o sucesso atual do futebol no Canadá e o significante número de imigrantes de diferentes países?
Sempre há uma conexão, e isso não está só limitado ao futebol. Mesmo nas décadas em que a seleção masculina foi em grande parte irrelevante no cenário global, Copas do Mundo tomariam conta das grandes cidades com bandeiras dos países participantes enfeitando as ruas quando times como itália, Portugal, Grécia, etc. estavam jogando em uma Copa do Mundo ou em Eurocopas. Muitos canadenses de primeira, segunda e terceira geração iriam reverter sua torcida aos seus países de descendência enquanto o Canadá estava encontrando espaço como sua própria nação futebolística. Agora, com a Itália sem conseguir se classificar e o Canadá praticamente garantido no Catar (a entrevista foi concedida na quinta-feira, dia 24), haverá um sentimento genuíno e autêntico de orgulho de que o Canadá chegou quando a Copa do Mundo começar.
Além disso, Alphonso Davies é um dos exemplos mais expressivos, mas longe de ser o único, de canadenses que imigraram para aqui e foram crescidos, desenvolvidos e moldados por este país. Eles têm orgulho de sua herança, mas tem orgulho também de ser canadense e vestir a 'Maple Leaf' internacionalmente.
Um grande exemplo disso é ver nomes como Stephen Eustáquio, Theo Corbeanu e Iké Ugbo, que tiveram a escolha do que quisessem representar e escolheram o Canadá. Estamos vendo mais atletas internacionais do que nunca buscando uma carreira internacional com o Canadá, e isso acaba de intensificar os rumores de jogadores como Marcelo Flores, Daniel Jebbison, etc.
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