Há um comprador do Cruzeiro, mas não um bilionário excêntrico

Há quase uma semana, fiz um longo discurso aqui no blog de como seria difícil para o Cruzeiro conseguir encontrar um investidor, mesmo criando a figura jurídica da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) e dando ao comprador o direito de ter controle majoritário sobre todas as decisões do clube.
Meu texto era uma ponderação ao discurso ameaçador de Pedro Mesquita, da XP Investimentos, para convencer o Conselho do Cruzeiro a entregá-lo para um comprador, dizendo que era isso ou o negócio não daria certo. O sucesso da operação cruzeirense com a entrada de Ronaldo como dono da SAF, porém, reforça um pouco o que ponderei naquele texto e que o torcedor deverá ver ser colocado em prática nos próximos anos.
A XP tinha, na manga, um comprador para o Cruzeiro. E por isso pressionou o Conselho para que a SAF fosse projetada da forma como queria quem estava comprando, não quem estava vendendo. Tanto que o mesmo Pedro Mesquita foi às redes sociais para anunciar a chegada de Ronaldo de forma surpreendente na manhã de sábado.
Só que o conto de fadas precisa deixar de estar na cabeça do torcedor a partir de agora. O próprio Ronaldo já fez questão de colocar um freio na empolgação do fã:
“Entendo todo entusiasmo com a notícia, mas a verdade é que temos muito trabalho pela frente. Não vou botar dinheiro, queimar dinheiro. A caminhada é longa”.
Essa foi uma das frases que pincelei entre diversas outras que Ronaldo proferiu em seus canais oficiais nas últimas horas. O Fenômeno quer tentar fazer algo que, aqui no Brasil, só Flamengo, Palmeiras, Grêmio e, agora, Atlético-MG, fizeram. Racionalizar a gestão e, a partir disso, recuperar o time em campo. Mas a tarefa dele é bem mais complicada, e ser um milionário dono do time muda muito pouco isso.
O Flamengo tinha um cuidado financeiro durante toda a gestão Bandeira de Mello. O clube colocava boa parte da receita para pagar dívidas e deixava o investimento no time de futebol em segundo plano. Com isso, foi duramente criticado pela torcida por não ganhar nada dentro de campo. O Palmeiras se livrou do passado de dívidas num aporte de R$ 150 milhões de Paulo Nobre que zerou as dívidas do clube e, com estádio novo e patrocinador pagando mais do que o clube valia, recolocou o time na rota dos títulos. O Grêmio, assim como o Flamengo, reorganizou a casa, ganhou títulos importantes como Copa do Brasil e Libertadores, mas, neste ano, viu o projeto degringolar dentro de campo e acabou rebaixado. O ano de 2022 é uma incógnita. O Atlético-MG só chegou ao 2021 vitorioso ao ver um grupo de empresários pagar todas as dívidas de curto prazo do clube e, tal qual os donos bilionários europeus, investir mais do que o clube é capaz de gerar de receita na contratação de um time estrelado.
O trabalho de Ronaldo será conseguir unir o que esses outros quatro clubes fizeram para reconduzir o Cruzeiro à Série A e, então, a partir disso, recomeçar o trabalho de engrandecimento do clube. A péssima notícia é que, hoje, a geração de receitas do clube é quase nula. Na Série B, sem patrocínios graúdos, o Cruzeiro é um clube sem fluxo de caixa. Para piorar, o terceiro ano seguido na Segundona cobra o preço na capacidade de fazer mais dinheiro.
Se a expectativa do torcedor cruzeirense era de que o CNPJ novo do clube significasse entrada de receita para investir no time, pode esquecer. Não há mais quem faça isso no futebol mundial. Nem mesmo o Newcastle, comprado pelo fundo do governo ditador da Arábia Saudita, tem muita expectativa de que isso vá acontecer. Além da enorme concorrência por espaço no futebol inglês, a Uefa está cada vez mais escaldada para impedir o aparecimento de novos ricos inflacionando e modificando o mercado, depois do combo Chelsea (2003), Manchester City (2010) e PSG (2017). O fair play financeiro está cada vez mais esperto para brecar investimentos fora de propósito.
Ronaldo é, portanto, a prova de que o que escrevi no dia 14 não está totalmente errado. Aquele investidor que chega num clube para colocar dinheiro a fundo perdido não existe mais. O Fenômeno chega com a mesma cautela que Eduardo Bandeira de Mello teve ao assumir o Flamengo. Pregou um discurso de que o clube é um gigante maltratado e que precisará de muito trabalho para se reerguer e voltar a ser protagonista.
Ronaldo faz um bom trabalho no Real Valladolid? Jornalista espanhol analisa erros e acertos do dono 'fenomenal'A diferença, porém, é que o Cruzeiro está na Série B e tem uma base de fãs três vezes menor que a do Flamengo. E isso significa ter muito menos potencial de geração de receitas no curto prazo. E, para piorar o cenário ao torcedor cruzeirense, Ronaldo não é dono só do clube brasileiro.
O risco que existe hoje para o Cruzeiro é que ele se transforme num clube médio que gere muitos bons jogadores para serem utilizados pelo Valladolid e, em seguida, revendidos a peso de ouro no futebol europeu. Ronaldo terá, nesse negócio, um resultado financeiro fenomenal. E o torcedor cruzeirense precisa estar preparado para isso. Como potencial de geração de receitas, o Valladolid é um clube com muito mais força do que o Cruzeiro atualmente.
O que o torcedor precisa entender é que o milagre do investidor bilionário que devolverá o protagonismo para o seu time de coração não existe. E, para se ter um bom negócio, é preciso primeiro investir em equilíbrio nas finanças. Num clube que fatura muito pouco, equilíbrio significa reduzir o aporte em atletas e priorizar o fluxo de caixa. Ronaldo já deixou claro que seu primeiro objetivo é o equilíbrio da gestão do clube.
É quase improvável que o Cruzeiro ascenda tão rapidamente agora quanto Ronaldo conseguiu ao vestir a camisa celeste dentro de campo. O tempo de retomada será longo. E o resultado poderá estar muito longe daquilo que o torcedor acredita hoje que será.
Ronaldo diz que a compra do Cruzeiro é um dia histórico para o futebol brasileiro. Talvez seja o começo do fim do mito de que a transformação de um clube em empresa resolve todos os problemas e devolve o protagonismo ao time dentro de campo. A maior chance que existe, hoje, é de que o futuro do Cruzeiro seja de equilíbrio, não de protagonismo. E que outros clubes de grande torcida passem pelo mesmo caminho, tendo de se acostumar a terem donos de um negócio lucrativo, que não signifique, necessariamente, um time vencedor dentro de campo.
Há um comprador do Cruzeiro, mas não um bilionário excêntrico
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