O que vocês perdem ao continuar odiando Neymar
O texto abaixo é do jornalista Francesco Gerardi, publicado originalmente em italiano no site da ótima revista Undici, e seu interesse independe do placar ou do desempenho de Neymar no jogo de logo mais contra o Manchester City. A própria Undici publicou o artigo pouco antes do apito inicial para PSG x City na semana passada.
Bons textos não são aqueles com os quais você necessariamente concorda, mas aqueles que te fazem pensar, que trazem um ponto de vista diferente. E se o fizerem com classe e estilo, tornando a leitura agradável, melhor ainda. Foi o que me pegou ao ler o artigo de Gerardi na Undici, aos quais agradeço pela autorização para esta tradução.
O que vocês perdem ao continuar odiando Neymar
Ele se tornou o jogador mais decisivo no mundo, mas também o mais bonito para se ver jogar, sem renunciar aos seus excessos e seu estilo único e atrevido
Por Francesco Gerardi
No 37º minuto do jogo entre Paris Saint-Germain e Bayern de Munique, quartas de final da Champions League 2020-21, Neymar recebe a bola na entrada da área adversária, deixa passar o tempo suficiente para dar a impressão de que vai finalizar, espera que Kingsley Coman se aproxime e com um único movimento muda a direção de sua corrida e da bola: com o calcanhar direito ele a devolve para o lado esquerdo, o movimento continua por todo seu corpo e vira uma pirueta que lhe permite reencontrar a posição para finalizar. Coman segue com sua corrida (perdida) para a direita, e no tempo que leva para girar e reencontrar Neymar, o número 10 do PSG já mirou e decidiu chutar a bola com a parte interna do pé direito, seguindo sua trajetória com o olhar. A esfera traça um doce arco e passa rente ao ângulo esquerdo do gol de Neuer. Tudo menos o gol. Tudo além do gol. Todo Neymar em um só momento, um só movimento.
No final do jogo do Parque dos Príncipes, Maurício Pochettino diz a[o jornalista] Guillem Balague que nesta temporada não houve um Neymar melhor do que o que se viu na partida de volta contra o Bayern. Pochettino obviamente fala por si e também de si: desde que chegou a Paris, uma grande parte de seu trabalho foi dedicada a Neymar, a construir uma relação com a pessoa, a proteger o jogador das lesões, a melhorar suas atuações. Mas Pochettino fala também para todos aqueles que são testemunhas de uma evidência: Neymar nunca jogou tão bem, nem em Paris nem em Barcelona. Nunca foi tão forte e saudável. Aos 29 anos, quatro após a decisão de deixar o Barça e sair da sombra projetada por Messi, Neymar finalmente teve razão: é o melhor atacante do mundo.
Se tem uma coisa que define "o melhor" é a consciência, a sua própria e a dos outros. Hoje Neymar pode dizer que Kylian Mbappé é o próximo de uma linha sucessória que começa com a Pulga e passa por ele: o presente sabe reconhecer o passado e o futuro, sabe distinguir-se daquilo que foi e do que será. Neymar agora diz quem foi o melhor ontem e quem será o melhor amanhã, porque sabe quem é o melhor hoje. Ele sabe e os outros sabem. O cume da montanha é o lugar no qual a supremacia não deve mais ser demonstrada, apenas reconhecida: quem está abaixo olha para cima e sabe, entende, aceita.
Neymar já não precisa mais prestar contas, fazer resumos, juntar estatísticas. Seus números foram absurdos desde o dia em que colocou os pés na Europa, mas nunca eram suficientes para convencer os céticos: ele jogava no Barcelona com Messi e Suarez? Assim não vale... Jogava no PSG e na Ligue 1? Aí é fácil... Na Champions League nunca ia além de uma fase acessível? Isso todos conseguem... Pois agora, depois dos jogos contra o Bayern (o melhor e mais vanguardista time da Europa), esses argumentos não valem mais.
O mais forte consegue sê-lo mesmo, e acima de tudo, na ausência de contexto: a superioridade é uma sensação que vai além da racionalização do aficionado e do especialista. Vendo Neymar contra o Bayern pode-se apenas testemunhar: isso está acontecendo diante dos olhos de quem sabe e quem não sabe, de quem entende e não entende, de quem aprecia e de quem detesta. Todo o resto são provas de uma evidência, a teorização de um fenômeno natural observável empiricamente: 85 toques na bola, 14 duelos individuais vencidos, 11 bolas na área adversária; além das sete faltas recebidas, seis roubadas de bola, seis chutes sendo três deles no gol, três chances criadas, uma bola interceptada, duas na trave. Tudo menos o gol, tudo além do gol.
Como elaboramos uma opinião sobre um jogador capaz de ir além da coisa mais importante que pode acontecer em um campo de futebol? Como observar um jogador que está sobretudo naqueles momentos do futebol em que não se pode somar estatísticas, cuja classe está naquela parte dos pés entre o calcanhar e a sola? Como se reconciliar com um talento capaz de unir a substância com a estética, aquela parte do jogo que por tanto tempo apontamos, discutimos e defendemos como sendo antiética?
Vivemos numa época em que tudo sabemos e não sabemos nada e, portanto, em que o irrelevante terá sempre uma parte maior frente ao relevante. No filme Moneyball, Jonah Hill interpreta Peter Brand, um economista formado em Yale e disposto a virar diretor geral de um time de baseball, autor da frase mais importante do filme: existem jogadores que são ignorados por motivos insensatos e supostos defeitos – por idade, aparência, caráter. Todos os esportes no fim das contas são o mesmo esporte, isso vale para o baseball e para o futebol. Foi sempre difícil negar o valor de Neymar limitando as observações aos jogos, ao campo. Mas foi sempre fácil diminui-lo se nos concentramos em motivos insensatos e seus supostos defeitos.
É possível amar um jogador que define como modesta uma festa de aniversário com todos os companheiros de time, suas famílias e estafes? É possível admirar um jogador cuja ideia de elegância é o branco absoluto? É possível adorar um ídolo que participa de torneios de pôquer e é protagonista de eventos do Fortnite, que desenha roupas e cria perfumes, que faz aparições na Casa de Papel e em Velozes e Furiosos? Podemos aceitar a superioridade de um sujeito tão ligado à estética e à cosmética, dentro e fora do campo? Como fazemos para levar a sério alguém que vai de Paris a Barcelona movimentando o valor do PIB de um país em desenvolvimento e depois se apresenta na coletiva de imprensa dizendo que foi Deus quem sugeriu essa escolha?
Em tempos nos quais o mundo desaba na nossa cabeça enquanto estamos ocupados procurando apontar os erros alheios, essas perguntas são hoje feitas pelas mesmas pessoas que nos últimos 15 anos se dividiram entre as tribos de Cristiano Ronaldo e Messi.
A culpa de Neymar não está no campo, o desprezo e a subvalorização que o acompanham até aqui nada têm a ver com seu jogo. Ao me preparar para escrever este artigo, resolvi rever as partidas consideradas as melhores de sua carreira: logo me dei conta que precisaria de uma semana só para ver aquelas do período blaugrana, e depois ainda faltariam as do Paris e da seleção... Passei então para os highlights e comp(ilações): logo entendi que gastaria ao menos três dias, um tempo que nem mesmo [o diretor de futebol Walter] Sabatini tem quando precisa ver os arquivos dedicados a contratar um próximo lateral-esquerdo qualquer.
Só depois de perder um bom tempo é que me dei conta que o ponto era justamente esse: como se estabelece a grandeza de um jogador cujos feitos vão muito além do tempo e da energia necessários para que os assimilemos? Como se define um jogador cuja grandeza está nas nuances do exagero, na imprudência com a qual realiza coisas que os outros fazem com seriedade, com discrição? E acima de tudo: como se pode negar uma grandeza tão evidente, tão escancarada?
Em geral os highlights de um jogo que encontramos no Youtube são chatos. Mas os de Neymar contra o Bayern são uma experiência diferente: o vídeo dura oito minutos e não tem nada ali que valha a pena editar ou cortar.
Neymar lembra ao futebol, que hoje é arquitetura funcionalista, o quanto são importantes a forma e a estética, o prazer e o indivíduo. Neymar sabe que vencer não é a única coisa que conta: você pode vencer estando aberto pela esquerda, abrindo espaço para um terceiro ou usando o espaço aberto pelo outro; mas pode vencer também protagonizando cada movimento, cada momento do jogo, sendo o pilar sobre o qual todo o peso da estrutura encontra equilíbrio. Neymar sabe que não existem apenas a via da natureza (força do corpo) e a da cultura (superioridade técnica): existe uma terceira via que leva ao triunfo, uma estrada que é a conjugação dessas duas vias.
A culpa de Neymar é ter contrariado abertamente o lugar comum: esportes de equipes requerem esforço coletivo, sim, mas eu quero ser o melhor do mundo; o futebol é fruto de um grupo, sim, mas eu quero construir o meu grupo. A culpa de Neymar está em admitir que a ambição é a premissa da grandeza, que a presunção é parte do sucesso: eu não quero ser Messi, quero ser mais que Messi. A culpa de Neymar está em ter lembrado ao futebol das linhas retas que a beleza está na pirueta: não se trata apenas de ir do ponto A ao B, mas daquilo que está no meio. Na viagem. A culpa de Neymar está em ter tido razão desde o início até o fim: deixar Barcelona e ir para Paris foi a decisão correta.
Tudo aquilo que é preciso saber e entender sobre Neymar está em uma jogada inútil feita durante uma partida irrelevante. Era 4 de fevereiro do ano passado, o PSG jogava contra o Montpellier: lá pela metade do primeiro tempo, o número 10 brasileiro está perto da bandeirinha de escanteio, pressionado por Arnaud Souquet. De todos os modos possíveis e disponíveis para se livrar da pressão do adversário, Neymar escolhe o mais difícil e atrevido: uma bicicleta, aquele movimento semi mecânico descrito tão bem por essa palavra em italiano ou português, mas ao qual o inglês faz justiça com a maravilhosa imagem evocada pelo nome rainbow flick. Souquet fica confuso e humilhado, a bola bate nele e tudo acaba em arremesso lateral. O árbitro Jerome Brisard intervém e intima Neymar a parar com aquele exibicionismo. Neymar faz mais do que protestar, ele se ofende. Protesta até forçar o árbitro a mostrar-lhe o cartão amarelo. Até o fim do primeiro tempo, Neymar continua a repetir ao árbitro, aos adversários e a um público que naquela época ainda se aglomerava em volta dos campos para observar e escutar: “Estou jogando bola. Estou apenas jogando bola”.
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