A pior “melhor Copa da história”
Dois dias antes daquela que seria a final mais espetacular da história das Copas do Mundo, o presidente da Fifa, o suíço-italiano Gianni Infantino, não teve dúvidas em afirmar: “Esta é a melhor Copa entre todas já disputadas".
A frase pouco tinha a ver com o futebol jogado no Mundial, como em geral pouco têm a ver com o esporte as declarações dos mandatários da Fifa. Frases do tipo se tornaram parte de um protocolo, uma espécie de formalidade diplomática a cada grande evento esportivo no planeta.
Mas se focarmos exclusivamente no que houve dentro do campo, embora seja possível discordar da frase, ela está longe de ser absurda.
Pode-se defender a tese, por exemplo, utilizando o recorde de gols na história de um Mundial (172) ou apontando a eletrizante última rodada da fase de grupos, que fez até a Fifa desistir da ideia de mudar o formato desta etapa da competição para a Copa de 2026.
Os deuses do futebol não poderiam ter sido mais generosos com o evento encerrado no último domingo também por terem lhe concedido uma final com o ápice que qualquer campeonato pode almejar: um empate por 3 a 3 entre duas seleções fortes, tradicionais, brigando pelo mesmo objetivo (tricampeonato), com dois astros enormes, um por time.
O campo foi benevolente sobretudo porque permitiu a esta Copa do Mundo premiar com a inédita glória máxima do futebol o argentino Lionel Messi, um dos maiores jogadores de todos os tempos.
Mas não foi só. O campo permitiu uma história incrível e também inédita como a de Marrocos, primeira seleção africana a chegar às semifinais da competição (e desta vez não foi “arrastada” até ali, como a Coréia em 2002). O campo nos trouxe vitórias tão emocionantes quanto inesperadas de seleções guerreiras como Arábia Saudita, Irã e Japão, com aqueles jogos que fazem uma Copa valer a pena.
Por alegria ou por tristeza, mas sempre traçando grandes roteiros e registrando assim a História do Futebol, os campos do Qatar foram regados por lágrimas de campeões como Lewandowski, Cristiano Ronaldo e Di María.
Houve mais. Mas, em resumo, não poderíamos exigir mais do campo, até porque o que se quer de uma Copa não é o melhor futebol do mundo, não são "as variações táticas, os extremos desequilibrantes ou o jogo apoiado". O que se quer de uma Copa são grandes roteiros, a emoção e, acima de tudo, diferenças culturais e esportivas convivendo, interagindo e competindo de forma saudável num mesmo ambiente.
Pois é justamente aí, nos aspectos culturais, no respeito ao ser humano, ao outro, que a Copa do Mundo do Qatar jamais poderá ser considerada a melhor Copa de todos os tempos, como afirmou Infantino.
Uma Copa que, para começar, houvesse o mínimo de decência e constrangimento por parte de quem a organizou, não teria acontecido onde aconteceu após virem à tona os detalhes sórdidos sobre o processo de escolha do Qatar como sede. E não sou eu quem diz, foi Joseph Blatter, ex-presidente da Fifa, que, claro, só se manifestou assim quando o poder de decidir (e de faturar) já não estava mais em suas mãos.
Uma Copa na qual toda e qualquer manifestação de seleções e jogadores a favor dos direitos humanos mais básicos, a favor do direito de as pessoas viverem livremente, foi duramente condenada e ameaçada com sanções pela própria Fifa – a mesma entidade que manteve seus olhos fechados aos abusos das autoridades catarianas nos anos que passaram.
Uma Copa na qual, dias antes do primeiro jogo, jornalistas foram impedidos de trabalhar, como costuma ocorrer no país – mas isso foi logo resolvido porque, afinal, não pegaria bem com a imprensa do mundo todo presente por lá.
Uma Copa que, por pouca transparência, gerou forte desconfiança não apenas em relação ao número divulgado de torcedores nos estádios, mas também em relação à natureza e origem de certos grupos de torcedores que praticamente decoravam as ruas do país.
Uma Copa na qual ao menos centenas de pessoas morreram construindo seus fugazes estádios – porque também é assim que as coisas geralmente funcionam por ali, e obviamente não seria diferente para um Mundial cujos prazos de construção eram curtos.
Este é, aliás, um aspecto curioso: o Qatar não é o primeiro país-sede de um grande evento esportivo onde direitos humanos e dos trabalhadores não são ou não eram respeitados. Mas desta vez, ao contrário do usual, não pareceu haver nem mesmo preocupação para encobrir, disfarçar, fingir que “não, as coisas não são como vocês dizem. Vejam, está tudo bem”.
A conivência da Fifa com tudo que ocorreu durante os processos de escolha, de construção da infraestrutura e de disputa dos jogos da Copa foi, também, inédita.
Sem demonstrar revolta ou fazer ameaças, desta vez a entidade permitiu que fosse desrespeitado até mesmo um acordo firmado com um de seus valiosos patrocinadores, a cervejaria que teria o direito de vender seus produtos na entrada dos jogos. Por que será?
Em certo aspecto, a última Copa do Mundo foi, de fato, um sucesso. Mas está claro que esse sucesso pouco tem a ver com a Fifa ou com o governo do Qatar. Ele tem a ver, exclusivamente, com a magia e o fascínio deste incrível esporte chamado futebol.
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