Conflito entre Rússia e Ucrânia atinge diretamente o futebol da região
No próximo dia 25, Minai e Zorya entram em campo pela 19a rodada da Premier League ucraniana. Será a partida de retomada da competição, após a longa e necessária pausa de inverno. Ao menos isso é o que está previsto na tabela. Com os últimos acontecimentos na tensa relação entre Ucrânia e Rússia e o risco iminente de invasão dos russos, é impossível prever qualquer coisa em território ucraniano.
O líder do campeonato, Shakhtar Donetsk, está na Turquia, onde realiza intertemporada costumeiramente. No último sábado enfrentou o Shakhter Karagandy, do Cazaquistão, em amistoso e venceu por 2 a 1. David Neres, reforço de 15 milhões de euros desta janela de transferências, esteve em campo. Nos próximos dias, jogadores e comissão técnica seguirão para suas casas em Kiev, capital ucraniana, e não para Donetsk, cidade do clube na região de Donbass. Desde 2014, quando a guerra no leste da Ucrânia começou, com grupos pró-Rússia se rebelando contra o governo ucraniano, o Shakhtar passou a ser um clube refugiado, sem direito a retornar para sua cidade, um dos epicentros do conflito.
Os torcedores pelo mundo já se acostumaram às "travas" da UEFA em seus sorteios de Champions League e Europa League: clubes ucranianos e russos não ficam no mesmo grupo e todos esforços possíveis são feitos para evitar cruzamentos em fases de mata-mata. Donbass é uma região ideologicamente ligada à Rússia, onde o russo é a primeira língua. O Shakhtar não é o único atingido diretamente pela guerra; ainda mais à leste está o Zorya Luhansk, obrigado a mandar seus jogos em Zaporizhzhia, 400km à oeste de Luhansk e distante da fronteira com a Rússia.
"Estou acompanhando tudo. Meus amigos, meus familiares, algumas pessoas sempre me perguntam como estão as coisas aqui. Todos ficam preocupados, porque é algo que está passando em todos os lugares, é o assunto mais comentado no mundo no momento. Procuro estar focado em treinar e trabalhar, mas claro que a gente pensa o que vai acontecer, o que pode acontecer conosco... E isso envolve muitas famílias, muitas pessoas do bem. A gente torce para não acontecer nada, fica em oração, pedindo a Deus, para não acontecer nada", relata o atacante Guiherme Smith, ex-Botafogo, contratado pelo Zorya em junho do ano passado. "O clube informa para não ficarmos preocupados com isso, só para trabalhar nesta inter-temporada e fazermos um resto de campeonato ótimo", completa o jogador, que neste momento realiza a intertemporada com o Zorya também na Turquia.
Guilherme, de apenas 18 anos, é um dos três brasileiros do clube de Luhansk. Já no Shakhtar são atualmente 12 jogadores oriundos do Brasil, além de Júnior Moraes, naturalizado ucraniano. Curiosamente, na prevista retomada do Campeonato Ucraniano, Zorya e Shakhtar atuarão como visitantes em regiões extremamente nacionalistas da Ucrânia, próximas às fronteiras com Polônia e Eslováquia. No entanto, com o aumento das movimentações militares da Rússia, o cerco já feito através de suas próprias divisas e também pelo território de Belarus e da Crimeia e o fracasso de negociações conduzidas por Estados Unidos e aliados europeus, o ápice desta guerra que começou em 2014 parece se aproximar. Se isso acontecer, inevitavelmente o futebol será ainda mais atingido.
"A gente fica com medo, apreensivo, porque não sabe realmente o que está acontecendo. Por causa da língua, não temos muita informação, mas se acontecer algo mesmo o clube vai nos informar. De qualquer modo, é claro que a gente fica apreensivo. O povo ucraniano é um povo muito querido, as pessoas me acolheram muito bem e eu tenho um carinho muito grande pela Ucrânia. Não só por estar jogando aqui, mas por realmente terem me acolhido muito bem. Isso que está acontecendo envolve muitas famílias que eu conheço, pessoas que viraram meus amigos", conta Guilherme.
O que acontece com os clubes em caso de invasão?
Desde a anexação da Crimeia pelos russos em 2014, os clubes da península se tornaram, praticamente, apátridas. Não jogam na Ucrânia e foram proibidos por FIFA e UEFA de participarem das competições russas - basicamente para evitar maiores crises diplomáticas para as duas entidades, já que a comunidade internacional, na maioria, não reconhece a Crimeia como parte do território russo. Há o caso específico do atual FC Simferopol que ajuda a entender a complexidade de tudo que envolve esse conflito.
Primeiro campeão na história da Premier League ucraniana, em 1992, logo após a dissolução da União Soviética, o Tavriya Simferopol deixou de existir com o início da guerra em 2014 e foi refundado apenas como FC Simferopol. A federação ucraniana, no entanto, decidiu manter a história do clube em seu país ao criar um novo Tavriya Simferopol e alocá-lo em Kherson, maior cidade próxima à fronteira com a Crimeia, no sul da Ucrânia. Assim, o FC Simferopol joga atualmente a liga da Crimeia e o Tavriya Simferopol disputa a segunda divisão ucraniana.
Portanto, a eventual invasão russa em território ucraniano e a anexação das regiões de Luhansk e Donbass não colocariam Zorya e Shakhtar no Campeonato Russo imediatamente, como muitos poderiam imaginar. A pressão internacional é enorme, com os Estados Unidos, através de seu presidente, Joe Biden, ameaçando sérias consequências para a Rússia. A escalada da tensão na região é cada vez maior, com várias nações já orientando a saída de seus cidadãos da Ucrânia. Como não haveria grande reconhecimento internacional em relação à ação russa, FIFA e UEFA não entrariam no imbróglio geopolítico. Lavariam as mãos, como no caso da Crimeia.
Conflito bem distante da solução
Análise divulgada na semana passada pelo Stratfor, renomado centro norte-americano de estudos globais de geopolítica, indica o enfraquecimento dos Estados Unidos como potência negociadora de crises. "Sob essas circunstâncias, os EUA – não querendo uma guerra na Ucrânia, mas se sentindo compelidos a se envolver de qualquer maneira – estariam enviando uma mensagem muito clara: 'Conhecemos seus planos e atacaremos você'. O problema com essa teoria é que, se os EUA pretendessem combater um ataque russo por outros meios que não as sanções, teriam deixado claras suas intenções muito antes da véspera de uma invasão. Mais importante, os russos teriam visto os preparativos americanos. A Rússia seria claramente capaz de reconsiderar seus planos se estivesse genuinamente preocupada com a resposta dos EUA".
O artigo é bastante crítico à postura norte-americana com o conflito. "Os EUA se abstiveram de dizer abertamente que a guerra está chegando e que responderá com todo o poder à sua disposição. Anunciou apenas as 'intenções' da Rússia, sem qualquer sugestão pública de que os EUA pretendem fazer algo a respeito. É como se os EUA quisessem que o mundo soubesse que a Rússia em breve atacará sem fazer nada além de dar um alarme. Esta é uma maneira estranha de construir credibilidade. Se você não pretende agir, seria melhor fingir surpresa. Ter conhecimento e ainda ser derrotado é uma má opção".
Vladimir Putin, presidente da Rússia, torcedor do Zenit São Petersburgo e entusiasta da utilização do esporte como ferramenta de propaganda, não aceita a inclusão da Ucrânia na OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar criada em 1949 após o fim da Guerra Fria. Historicamente, a Ucrânia é considerada o coração da nação russa, elemento central de sua identidade.
Volodimir Zelensky, terceiro presidente da Ucrânia desde a deposição de Viktor Yanukovich, que desencadeou todo conflito em 2014, afirma que as pretensões russas ferem a autonomia de seu país. Durante o período soviético, milhões de ucranianos morreram de fome entre 1932 e 33 no que ficou conhecido como Holodomor, ou a Grande Fome, e marcou para sempre gerações de famílias ucranianas.
Rinat Akhmetov, bilionário e proprietário do Shakhtar, foi acusado nos últimos anos de financiar grupos pró-Rússia durante o conflito. A Arena Donbass, em Donetsk, estádio de 400 milhões de dólares erguido por Akhmetov para o Shakhtar em 2009, está fechado há oito anos. Nesse período, mais de uma vez foi avariado por bombas. Desde então o Shakhtar passou a mandar jogos em Lviv, depois Kharkiv e em 2020 se estabeleceu em Kiev. Isso cria situações inimagináveis, como por exemplo com o lateral brasileiro Dodô, ex-Coritiba, contratado pelo clube em 2018, que simplesmente não conhece Donetsk.
"Quando cheguei, fomos direto para a cidade do rival, jogamos no estádio do rival. Em Kiev, não temos o número de torcedores nas arquibancadas que desejamos, porque está fora da cidade, mas na Champions ao menos lota. Isso é algo bem incomum, sentimos falta da torcida. Eu nunca peguei um jogo com toda torcida do Shakhtar como em Donetsk, com o estádio lotado", contou Dodô em entrevista à ESPN em maio do ano passado. Na época, Akhmetov desejava retornar o mais rápido possível a Donetsk. Diferentemente dos jogadores, que se sentiam seguros na capital ucraniana.
Passados oito meses desde então, o sonho de voltar a atuar na Arena Donbass é algo cada vez mais distante. Assim como a solução para um conflito que fortalece o ego dos poderosos e atinge a população vulnerável da região.
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