É comum falarmos como o jogo de futebol mudou nos últimos anos, e um dos principais fatores dessa mudança é o aspecto físico. A evolução da preparação física é notória, o que torna os jogadores de futebol atletas cada vez mais bem preparados para o ritmo intenso de um jogo e também do calendário. A Copa do Mundo deste ano será um capítulo especial nesse cenário, por vários motivos, que vão desde a sua curta duração até o período em que será realizada. Desafios a mais para a seleção brasileira e, especificamente, para Fábio Mahseredjian.
Aos 55 anos, o experiente profissional é o preparador físico na comissão técnica liderada por Tite. Nesta entrevista concedida à ESPN antes do jogo contra a Bolívia, Fábio falou sobre a evolução do jogo pelo aspecto físico, sua relação com os clubes, abordou casos específicos dentro da equipe, como Neymar, Thiago Silva e Daniel Alves, e entrou em detalhes sobre a Copa e como preparar o time para a principal competição de 2022.
Jogo, recuperação, treino, jogo. Qual é o intervalo necessário entre eles para obter o máximo rendimento físico do atleta de elite no futebol?
Muitos estudos nos mostram que o desgaste físico desse atleta é enorme em uma partida de futebol. As reservas de carboidrato, que são o combustível para o atleta jogar, a gasolina do atleta, depletam após uma partida de futebol. E você precisa de aproximadamente setenta e duas horas de intervalo entre o jogo e outro. Isso não impede que seja menos. Para que você tenha, como você me perguntou, a máxima performance desse atleta, deveria ser em torno de setenta e duas horas.
O CIES Football analisou 7855 jogos de 31 campeonatos entre 2020 e 2021. LaLiga, na Espanha, lidera em média de distância percorrida pelos atletas de linha com 103,7 km por jogo, seguida de Suécia (103,6km) e Holanda (103,5 km). A Serie A italiana é a quarta, a Champions League sétima e a Premier League 11a. Na parte de baixo, a Copa Sul-Americana e o Brasileirão estão empatados na última posição com 95,8 km cada, seguidos pela Libertadores (96,8 km). Quando analisadas as corridas em alta intensidade, LaLiga também lidera com 803,9 m por jogador, seguida de Polônia, Inglaterra, Itália e Suíça. Nas três últimas posições: Copa Sul-Americana (647,3 m), Libertadores (671,1 m) e Brasileirão (673,9 m). São dados relevantes? Que leitura você faz desses resultados?
Primeiramente eu faço uma crítica ao sistema utilizado para analisar essas distâncias percorridas. Sejam elas em termos de volume, sejam elas distâncias percorridas em alta velocidade. Normalmente, o que é mais fidedigno para nós, são os traqueamentos dos campeonatos europeus, como a Premier League e a Ligue 1. Porque são câmeras colocadas em todos os estádios, em volta do gramado, onde você tem as distâncias percorridas, em alta velocidade ou não, de forma mais fidedigna. Esse sistema utilizado nessa reportagem publicada em uma revista, que não é um artigo científico, utiliza uma câmera de televisão que monitora o campo e, por vezes, perde onde está especificamente um jogador. Então não monitora os dois times ao mesmo tempo, isso pode coincidir com erros drásticos nessa medida. Mesmo assim, vamos supor que os erros são iguais ao erros de traqueamento da Premier League e de LaLiga, por exemplo. Quais hipóteses podemos levantar? Uma hipótese pra mim dessa diferença grande de distância percorrida entre a liga espanhola e a liga brasileira é que, no Brasil, o jogo para muito. Uma segunda hipótese é a condição dos gramados, que nós aqui na seleção tanto lutamos para que seja melhor. O gramado pior faz com que o jogo pare mais também e isso pode acarretar essas enormes diferenças de distâncias percorridas entre o Campeonato Brasileiro e o Campeonato Espanhol.
Esses dados reforçam a percepção, muitas vezes do torcedor, de que o futebol jogado nas grandes ligas europeias parece outro esporte, na comparação com o praticado na América do Sul?
Nós também pensamos assim por vezes. Chegamos na CBF na segunda-feira pela manhã e conversamos sobre isso. Parece outro esporte, é muito mais intenso, a bola não para. Uma outra hipótese que eu ia citar, o árbitro para muito o jogo e lá não. O atleta aqui reclama muito do árbitro e lá não. Volto a dizer, as condições do gramado lá são completamente diferentes daqui. E posso levantar outras hipóteses, mas com certeza esses são as principais hipóteses que fazem com que o jogo lá seja mais intenso do que no Campeonato Brasileiro.
Como funciona a sua comunicação com os departamentos físicos dos clubes europeus e também brasileiros? Você tem acesso aos relatórios internos referentes aos jogadores da seleção?
Vou fazer um pequeno histórico para explicar como conseguimos essa colaboração dos clubes brasileiros e europeus. Quando chegamos na CBF, para o dia a dia, não existia essa comunicação, tivemos que criar um canal de comunicação. Como foi criado isso? Ao final de cada Data FIFA, mandávamos para cada clube um relatório pormenorizado com tudo que o atleta fazia aqui. Quando ele se apresentava, quantas horas de fuso percorreu, quantas horas de voo ele teve, quantos treinos ele fez, cada treino que foi feito, o GPS dele. Isso fez com que conseguíssemos um canal de comunicação com esses clubes. Hoje, o Guilherme Passos Ramos, que é o nosso fisiologista e responsável por essa área, antes do atleta chegar aqui nós recebemos esses dados dos clubes europeus também. Além disso, com as viagens que fazemos de observação, conhecemos o preparador físico da Juventus de Turim, Simone Folletti, o preparador físico do Manchester City, Lorenzo Buenaventura, e o head of Sports Science, que é o Sam Erith, o preparador físico do Liverpool, o Andreas Kornmayer. Então todos esses profissionais, temos ligação direta com eles. Qualquer dado que o Tite me pede, com uma ligação, uma mensagem de WhatsApp, em menos de 24 horas eu consigo o dado que precisamos. Por isso essa relação foi muito importante para que obtivéssemos os dados do atleta lá onde ele joga, tanto no Brasil como no exterior.
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Haverá apenas uma semana de preparação para a Copa do Mundo, ou um pouco mais dependendo do sorteio dos grupos. Já é um Mundial diferente por ser o primeiro em um período de pandemia, que afetou todos atletas em seus treinamentos nos últimos dois anos. Além disso, será uma Copa no meio da temporada europeia, diferentemente de todas as últimas. Na comparação com 2018, o que muda no seu trabalho?
Existem prós e contras. No que diz respeito à pandemia, sou muito otimista nesse aspecto. Acredito que isso vai zerar ao final desta temporada. Aquela carga de jogos excessivos à qual os atletas foram expostos agora acaba. Todos terão as férias no meio do ano, voltam no final de julho para a pré-temporada nos clubes e começam a temporada em agosto normalmente. Então, assim, acredito que acaba eximindo o problema que foi a pandemia. Quanto à competição começar em novembro e não no meio do ano como era antes, o grande pró pra mim é que eles não estarão em final de temporada como na Copa de 2018. Alguns atletas, como o Douglas Costa, se apresentou aqui na seleção brasileira com uma lesão de posterior sofrida no último jogo da Juventus. Eu estava assistindo o jogo, vi que ele saiu, liguei para ele ao final do jogo. Ele estava no caminhão de bombeiros, porque tinham sido campeões, e me disse para ficar tranquilo que estava tudo bem. Quando ele chegou aqui, porém, tinha uma lesão de iscotibial do bíceps femoral da coxa dele. Então, essa incidência de lesões acredito que será absurdamente menor em ano de Copa do Mundo. A grande preocupação nossa, da preparação física e da fisiologia, não é quanto ao treinamento desses atletas, não é evolução de potência aeróbia, de potência e resistência anaeróbia, dos fatores neuromusculares, mas sim quanto à recuperação dos jogos que eles tiveram antes de se apresentarem. Como teremos de uma semana a dez dias, é plausível, entre aspas, simples, recuperar esses atletas para o início da Copa do Mundo. A grande dificuldade é que essa Copa do Mundo será realizada em 28 dias, menos que os 33 ou 34 dias das outras Copas. Então você pode esperar um jogo a cada três dias. Jogou, três dias de descanso. Então precisamos acelerar a recuperação desses atletas entre um jogo e outro.
Quais são os jogadores da seleção brasileira que mais se preocupam em obter dados, informações sobre a preparação física?
Hoje é difícil pontuar um ou outro. A conscientização do atleta é tão grande nos dias atuais, que isso me deixa muito feliz. Quase todos vêm nos perguntar qual foi a distância que ele percorreu, quanto ele correu em alta velocidade, os dados dele. Então fica muito difícil nomear A, B ou C. Eu posso lhe dizer que a grande maioria se preocupa com sua performance física.
Thiago Silva e Daniel Alves são dois veteranos e atletas exemplares, aos 37 e 38 anos, respectivamente. Você, que tem acesso a todos os dados de análise física deles, como explica carreiras tão longevas e em tão alto nível?
Simples, eles sempre se cuidaram. Conheço o Thiago Silva desde quando trabalhei no Fluminense, em 2007 e 2008, ele tinha 23, 24 anos. Continua um atleta exemplar, se cuidando, não usa álcool, só de vez em quando com o objetivo de relaxar. Fisicamente está sempre antes para fazer os exercícios, não preventivos porque não gosto desse nome, mas as ativações para entrar em campo. Preocupa-se com o pós jogo, em fazer tudo que diz respeito a sua recuperação, para tentar acelerar esse processo. Assim como é o Daniel Alves. Conheci o Dani em 2006, quando estive pela primeira vez na seleção brasileira. É impressionante o cuidado que ele tem com seu corpo. O Dani é lépido, rápido, lógico que, com a idade seus níveis de potência caem um pouco, mas ele compensa com sua inteligência. São atletas de futebol na sua essência. Hoje em dia não existe mais o jogador de futebol, ele vem perdendo cada vez mais espaço para o chamado atleta de futebol.
Vocês têm enorme atenção com todos jogadores, naturalmente. Um especificamente, nos últimos anos, tem sofrido com muitas lesões, que diminuíram sua presença em campo pelo clube: Neymar. Pelo Barcelona, em quatro temporadas, jamais disputou menos do que 41 jogos - e isso aconteceu na temporada inicial. Pelo PSG, não passou de 30 e na atual temporada está com somente 21. Há preocupação maior com a situação física do Neymar, pensando nos dois últimos meses deste ano?
Não foi a quantidade de lesões. Tudo isso temos planificado. Trabalhamos direto com o Ricardo Rosa, que é seu preparador físico e que trabalha conosco aqui também. Aliás, conheço o Ricardo há 30 anos, passou por Corinthians, Santos, time da Arábia, então é um profissional experiente. E o Rafa, que é seu fisioterapeuta. O problema é que cada lesão o deixou afastado por um longo período. No Paris Saint-Germain ele teve a lesão do quinto metatarso, que o afastou por aproximadamente 90 dias. Novamente uma lesão do quinto metatarso, que o deixou afastado por mais um tempo. Agora essa lesão no tornozelo que o deixou afastado por aproximadamente 74 dias. Então, a quantidade de lesões, principalmente traumáticas, lesões de contato, o fizeram perder um tempo grande devido à gravidade dessas lesões. É claro que isso nos preocupa, claro queremos acelerar o processo dele de recondicionamento físico. Mas nós acreditamos que com essa parada, o final de temporada, e acreditamos que ele vai estar à disposição, as férias e o início da próxima temporada, se ele não tiver nenhuma outra lesão de contato, vai fazer com que ele esteja na sua melhor performance na Copa do Mundo.
Como é sua relação com o Tite? Quando você começou a trabalhar com ele e como foi o processo de construção de confiança na relação entre vocês?
Eu conheci o Tite em 2004, quando ele foi para o Corinthians e eu estava lá, e me dei muito bem com ele e sua comissão técnica. Como trabalho. Não esqueço quando ele me disse "Não somos amigos, somos companheiros de trabalho". Olhei para ele e falei "Tá bom, vamos trabalhar então". Fiquei meio assim... No final de 2004, ele me deu um livro onde na dedicatória ele colocou "Agora nós somos amigos". Falei "Tá bom, vamos continuar trabalhando". Ele respira futebol 24 horas por dia. Sempre digo isso, o trabalho de uma comissão técnica multi-disciplinar, e ele respeita muito o trabalho de todas as áreas: preparação física, fisiologia, departamento médico. Essa é uma virtude enorme dele.
No linguajar boleiro, antigamente tinha jogador que dava muito migué nos treinamentos. Corria pouco, reclamava de algumas dores... Hoje em dia isso é impossível, por causa de todas as medições feitas durante as atividades e os jogos. Já pegou algum caso desses na época de clube? Jogador atualmente dando migué no treino e depois desmascarado pelo GPS?
Sabe que, como te disse, não há mais espaço para o jogador, para o boleiro. Hoje eles são atletas. E se, por ventura, alguém exagerou, e não estou dizendo sobre ambiente de seleção e sim de clube, onde sempre estive, exagerou na noite anterior ou, como boleiramente a gente fala, emburacou na dia anteior, eles vêm e te contam. Prefiro assim. Tenho vários atletas com quem eu trabalhei, que chegavam pra mim e falavam "Fábio, tô morto". Não precisa falar mais nada, fica aí! Houve até um atleta uma vez no Corinthians, a gente já tinha sido campeão, não vou falar o nome dele, teve um churrasco na quarta-feira. Na quinta-feira, quando nos reapresentamos, sempre entro no vestiário e começo "Vambora, vamos trabalhar, horário é horário, conversa fiada matou carambola". Na hora que eu olhei, esse atleta estava sentado no banco, parecia que tihha sido atropelado na Marginal Tietê, o cabelo todo atrapalhado. Falei "Meu Deus, o que aconteceu com você?" e ele baixou a cabeça de novo. "Fica no DM, não entra no campo" (risos). Como falei, eles te contam. Se não te contarem verbalmente, fisicamente você percebe no ato.
Fábio Mahseredjian em coletiva de imprensa na CBF
Lucas Figueiredo/CBF
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