Se tem uma regra que causa controvérsia é da mão/braço na bola. Quantos pênaltis marcados onde os árbitros estão apenas cumprindo as orientações que recebem, mas que parece uma posição natural do braço, do movimento do atleta e se torna difícil concordar que a regra entenda tal lance como infração. Regra que muitos acreditam que era mais simples antes, quando o árbitro analisava somente se o jogador teve a intenção ou não de colocar a mão/braço na bola, definida em praticamente uma linha, bem distinta da atual.
O assunto é relevante e polêmico não somente no Brasil, mas no mundo - há quem diga que os jogadores vão passar a jogar com os "braços amarrados". As regras são feitas pela International Board, e os árbitros recebem orientações de suas federações e confederações para aplica-las, porém a dificuldade em se padronizar as marcações pode partir justamente do fato de haver margem para diversas e distintas interpretações, principalmente ao analisar o movimento e a ação do jogador.
Para aprofundar neste assunto tão apitoresco, conversei de forma exclusiva para este blog com Osman, atacante da Ponte Preta; Paulo Calçade, comentarista dos canais Disney; Rafael Kiyasu, treinador de goleiros do Santos e instrutor da CBF Academy; e com o professor Felipe Arruda, especialista em Biomecânica.
Paulo Calçade vê a necessidade de mudança: "De repente nos tornamos especialistas em biomecânica, capazes de afirmar o que é ou não a posição normal dos braços em relação ao corpo em ações e gestos que jamais experimentamos. Especialmente nos pênaltis, a regra do momento é a normalização do absurdo em prol de comportamentos que geram preocupação e medo nos jogadores. Como disputar uma bola no alto sem usar os braços como apoio para a impulsão e o equilíbrio? Por conta de um tecnicismo equivocado, vários placares são forjados por conta de uma verdade que simplesmente não existe. É hora de consultar os verdadeiros especialistas e mudar!".
Indo de encontro com o pensamento do Calçade, é possível ver a preocupação dos jogadores em relação aos braços nas jogados em campo através da fala do atacante Osman.
Rafael Kiyasu, instrutor da CBF Academy, questiona alguns pontos da regra e exemplifica com movimentos de atletas de outras modalidades: "Pode parecer uma ironia que o texto da regra inicie com a seguinte frase: 'Com o objetivo de determinar com clareza as infrações de mão/braço na direção da bola...'. E as controvérsias do texto não param por aí, principalmente quando a regra fala em braços e mãos em posição antinatural: me pergunto o que seria algo antinatural? Quando falamos e estudamos corpo humano, devemos entender alguns princípios básicos de movimento como, por exemplo, acelerações e desacelerações, tão comuns nos lances decisivos no futebol - nos tornamos instáveis por determinado momento e neste instante os braços tornam-se partes essências do corpo em busca de estabilidade, basta ver como qualquer equilibrista abre os brações para se manter. Até mesmo em movimentos lineares como uma prova de 100 metros rasos - sem curva, sem adversário influenciando seu movimento, sem bola para acertar -, observe o comportamento dos braços com movimentos mais amplos para iniciar o impulso da corrida e braços mais abertos para frear rapidamente o corpo, chamariam isso de movimento antinatural, ou o movimento mais natural possível para impedir que o corpo desequilibre e vá de encontro ao chão?”
Atletas partem para a final dos 100 metros rasos na Olimpíada de Londres em 2012
Getty
Chegada da final dos 100 metros com barreiras nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008
Getty
Rafael também discorre sobre a questão da infração por estar com os braços acima da linha do ombro: "Outro movimento é o salto, e outro ponto controverso da regra se dá quando ela fala em braços acima da linha do ombro. O movimento mais 'natural' nesse caso seria que o atleta saltasse com grande auxílio dos braços, principalmente em movimentos de cabeceio. Observe atletas de futevôlei com a tarefa de saltar e cabecear, porém sem adversário influenciando, sem disputa física pelo espaço, ainda sim qualquer jogador terá um forte auxílio, tanto para impulso como para seu equilíbrio e ataque à bola. Como não elevar os braços acima da linha dos ombros em lances como esse?".
Movimento dos braços no futevôlei
Arquivo pessoal
"E um último aspecto que acredito ser bem relevante é: somos seres complexos, com milhares de graus de liberdade articular, isso fará com que não se tenha um padrão único e idêntico de movimento de braços entre duas pessoas e nem mesmo a mesma pessoa fará o mesmo movimento em um lance semelhante. Limitar movimentos de braços em ações rápidas limitará não somente performance de qualquer jogador nesses lances decisivos, como também corremos o risco de lesões a partir do ponto que os atletas terão esses movimento de força e potência restringidos", concluiu Kiyasu.
O professor Felipe Arruda Moura, que possui mestrado em Ciências da Motricidade e doutorado em Educação Física, é um dos responsáveis pelo Laboratório de Biomecânica Aplicada da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e também contribuiu com o seu conhecimento sobre o assunto.
Renata Ruel: O que é a biomecânica e como se aplica no futebol? Essa ciência considera movimento natural e antinatural do braço de um jogador?
Felipe Arruda Moura: A Biomecânica é a Ciência que estuda o movimento sob a perspectiva das leis da Mecânica, da Física. Na Biomecânica estudamos as forças que agem no corpo, e seus efeitos. Nas Ciências dos Esportes, incluindo o futebol, a Biomecânica é essencial. É por meio da Biomecânica que, por exemplo, jogadores e árbitros são rastreados para a obtenção de informações sobre distâncias percorridas, faixas de velocidade, acelerações, posição em campo, entre outras. No entanto, uma das linhas de investigação da Biomecânica consiste em estudar os padrões de movimento das pessoas. Conhecendo quais são as características do movimento e sua faixa de variação, é possível identificar quais movimentos fogem do “normal”. É assim, por exemplo, quando desejamos estudar lesões. Sabemos qual é o movimento esperado, e identificamos qualquer variação além dessa faixa. Nesse caso, respondendo à pergunta, é possível identificar esses padrões para cada habilidade motora nos esportes. O problema é que, quanto maior for o nível de habilidade de um indivíduo, como atletas de alto nível, maior é a capacidade dele de variar seus movimentos e ter um padrão individual. Desse modo, para atletas do esporte de elite, a capacidade de variação de movimentos é grande, o que dificulta a definição do que é um movimento natural ou não.
Qual seria a melhor ou mais justa definição nas regras e orientações para os atletas não jogarem com os "braços amarrados ao corpo" sem correrem riscos de uma infração ser assinalada contra a sua equipe, se o movimento que está fazendo é o natural da biomecânica?
Esse é um ponto que requer muita discussão. Criar uma regra que obrigue um atleta a não realizar movimentos que são determinantes em sua função pode ser injusto. Os braços exercem ação fundamental na mecânica de movimento dos atletas, desde a função de gerar momento linear (o que pode ser didaticamente entendido como impulso) como também para ajudar o atleta a estabelecer e reestabelecer o equilíbrio. Assim, entendo que a regra deve buscar punir aqueles que deliberadamente desejam se beneficiar da infração, colocando a mão na bola ou aumentando sua área de ação. O problema é, de acordo com as orientações da regra, entende-se que se o jogador estiver com os braços muito afastados ou acima do ombro ele está deliberadamente aumentando sua área de ação, o que não é sempre verdade. Para correr, saltar, dar um carrinho, fazer um grande afastamento das pernas para um desarme, o jogador muitas vezes precisa colocar os braços nessas posições, ou terá um desempenho muito menor, o que pode ser injusto. O exemplo mais claro disso é que, quando caminhamos, os cotovelos estão estendidos, mas para correr, nossos cotovelos ficam flexionados. Trata-se de uma demanda da corrida e nos indica que cada movimento pode exigir uma posição específica dos membros superiores. Portanto, é essencial que os profissionais que atuam no futebol, incluindo árbitros e os próprios jogadores, conheçam os padrões de movimento das ações motoras para compreender como os atletas executam o movimento.
O pênalti marcado do Thiago Silva, na final da Copa América de 2019, contradiz a regra na questão do braço de apoio. O carrinho é permitido pela regra, desde que não seja de forma imprudente, temerária ou com uso de força excessiva, e observamos uma imagem do material da Fifa considerando o braço de apoio como não infração, mas se a bola bater no braço que está erguido uma infração deverá ser assinalada, em função do jogador ampliar o espaço corporal e assumir o risco de bloquear a passagem da bola. As posições de ambos os braços fazem parte da biomecânica do jogador em uma ação, carrinho, que é permitida pela regra ou realmente ou não?
Thiago Silva intercepta bola com a mão apoiada no chão na final da Copa América 2019
Getty Images
Situação similar à de Thiago Silva
Reprodução Fifa
Acredito que as duas imagens nos dão uma clara ideia do que é o padrão de movimento do atleta. Dois jogadores de alto nível, de diferentes nacionalidades, executam a ação motora com características muito semelhantes. Um dos membros superiores fica afastado do corpo, mas serve para apoio no gramado, o que de acordo com a FIFA não é uma infração. Porém, se observarmos o outro, vemos que ambos os jogadores apresentam o mesmo padrão, o que se identificado em vários outros carrinhos, pode representar claramente um padrão, um movimento natural. Desse modo, penalizar o atleta pode ser injusto uma vez que o mesmo precisa dos membros nessa posição para conseguir minimamente executar o movimento. Cabe à FIFA decidir se é isso que ela deseja. Se for, a escolha do atleta em executar o carrinho dentro da área, por mais necessário que seja, será sempre um risco.
Em um movimento do jogador ao saltar (braço acima da linha do ombro segundo a regra é infração), girar, mudar de direção, ao ir disputar a bola com o adversário, ao se posicionar em uma ação de bloqueio ou até mesmo na corrida, quais os fatores que a Regra do Jogo e as orientações aos árbitros devem levar em considerações para se marcar ou não uma infração? O que é o braço para o equilíbrio do corpo do atleta ao se movimentar?
Os árbitros devem considerar que os braços exercem função fundamental para que os atletas consigam executar o movimento com excelência. Vamos usar a corrida para exemplificar essa importância. Para dar um passo durante a corrida, colocamos um dos nossos membros inferiores para frente. Esse movimento geraria uma grande rotação do corpo inteiro, o que não é o objetivo porque queremos nos deslocar para frente. Para compensar e gerar um equilíbrio, no lado oposto também movimentamos os membros superiores para frente. Assim, um movimento anula o outro e o atleta não gira, mas sim se desloca para frente com um gasto energético muito menor. A mesma interpretação serve para todos os outros movimentos. Não há como saltar com a máxima potência do atleta se ele não utilizar o movimento dos braços. Não há como executar um carrinho com excelência e segurança sem utilizar os braços para apoio ou gerar equilíbrio. Nesse ponto, reforço a importância de capacitação em Biomecânica para que os personagens envolvidos nessa avaliação no futebol saibam quais são as características do movimento. O grande problema é que, ter uma ideia do padrão de movimento para ações mais recorrentes, como correr, chutar, saltar, é até possível. No entanto, para movimento atípicos, como muitas vezes ocorre em lances polêmicos, definir o que é natural ou não é muito questionável. Nesse aspecto, caberá ao árbitro a interpretação do lance, e caberá aos jogadores, comissão técnica, torcedores e jornalistas respeitá-lo, concordando ou não com sua posição.
Vamos com exemplos de lances polêmicos e o que a Biomecânica nos mostra sobre esses lances no Brasileirão: Santos x Atlético-MG, Junior Alonso; Bragantino x Palmeiras; e Fluminense x Corinthians, Bruno Méndez.
Lances polêmicos de bola na mão/mão na bola no Brasileirão
Reprodução
A partir das imagens, chegar a uma conclusão se esse movimento representa o padrão normal ou se o atleta fez a ação deliberada para aumentar o espaço de ação, é um grande desafio e questiono se nesse momento haveria uma solução tecnológica que contemple todas as situações. O que nesse caso, de um movimento atípico, representaria um movimento natural? Não temos uma resposta definitiva. Além do que foi explicitado acima, sobre a mecânica padrão de movimento, é preciso verificarmos a velocidade com que todo evento ocorre. Se o atleta já estava com aquela posição dos braços por um grande período, pode ser que ele o estivesse fazendo deliberadamente para ganhar vantagem. No entanto, em eventos extremamente rápidos, provavelmente não há ação deliberada. O tempo de reação de uma pessoa é da ordem de 200 milissegundos, logo, qualquer ação abaixo desse tempo não representa uma reação do atleta ao movimento de seu adversário. Nesse caso, câmeras com boas resoluções espaciais e temporais dariam bons indicativos, mas não acredito que chegariam a uma conclusão definitiva. Nesses casos, particularmente, acredito na interpretação do árbitro que certamente possui uma vasta experiência para a tomada de decisão.
Texto livro de Regras do site da CBF
Regras da CBF sobre bola na mão/mão na bola
Reprodução
Entre as orientações recebidas pelos árbitros para nortear as Regras e facilitar as análises, algumas considerações são fundamentais para discernir o que marcar ou não: posição natural ou antinatural; distância curta ou longa, havia tempo para uma ação; bola vem do adversário ou de um companheiro; bola vem de forma inesperada, fator surpresa, mudança de direção; mão voluntária ou acidental; o jogador estava em ação de disputa ou bloqueio no momento do toque? Se sim, ampliando o espaço corporal?
As regras e as orientações, assim como os árbitros e todos que trabalham com o futebol, necessitam entender, conhecer e considerar tudo que envolve a prática da modalidade, inclusive os movimentos dos atletas para o esporte se tornar simples e justo.
Além dos insultos: o depoimento de dois árbitros sobre o racismo no futebol brasileiro
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