“Que momento maravilhoso para o beisebol. Que momento maravilhoso para Atlanta e para o estado da Geórgia. Que momento maravilhoso para o país e para o mundo. Um homem negro é aplaudido de pé no Sul Profundo por quebrar o recorde de um ídolo de todos os tempos do beisebol.”
Vin Scully é um dos maiores narradores esportivos da história da TV. Como responsável pelas transmissões do Los Angeles Dodgers, ele estava na cabine do estádio de Fulton County quando a equipe californiana visitava o Atlanta Braves na abertura da temporada de 1974. Naquela noite, Hank Aaron rebateu o 714º home run de sua carreira, batendo o recorde de Babe Ruth e Scully presenteou o público com uma das melhores narrações de sua carreira.
A referência social em torno do feito de Hank Aaron poderia ser apenas simbologia, uma licença poética do narrador. Mas a narração descreve bem o que ocorria no momento. A superação da marca de Ruth era mais do que apenas um recorde histórico mudando de mãos, era uma questão racial.
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Aaron mostrava ser um fenômeno desde o início de sua carreira na MLB, quando os Braves ainda atuavam em Milwaukee. Em seu segundo ano, 1955, foi o líder da liga em rebatidas duplas e teve 31,4% de aproveitamento no bastão. Na temporada seguinte, foi o melhor em rebatidas e em aproveitamento. Mais um ano se passa e ele foi o campeão de home runs e corridas impulsionadas. O único fundamento ofensivo em que ele não se destacava era roubos de base, ele acabou se tornando um ladrão de base bem decente no auge de sua carreira, já na década de 1960.
Até aí, a MLB teve vários rebatedores fenomenais: Ted Williams, Stan Musial, Willie Mays, Mickey Mantle… Ainda assim, o recorde de home runs de Babe Ruth permanecia intocado. Eram 714. Willie Mays tinha 660, Mickey Mantou parou em 536, Ted Williams ficou em 521, Lou Gehrig em 493 e Stan Musial em 475. Ou seja, ninguém chegou realmente perto da marca de Ruth. Era uma verdade absoluta, consolidada. O beisebol se desenvolveu por décadas tendo esse ícone rechonchudo, bonachão, neto de alemães, que construiu o maior templo e o time mais vitorioso da liga e ainda estabeleceu um patamar inatingível de home runs.
Mas Aaron tinha uma virtude além do talento absurdo para rebater bolas: longevidade. O defensor externo dos Braves não parava de acumular temporadas em altíssimo nível. Teve um início de carreira explosivo na segunda metade da década de 1950 e viveu o auge nos anos 60, mas continuou na elite da MLB no início da década de 1970. E aí a marca de Ruth ficou em risco.
Seria normal que Aaron tivesse uma queda brutal a partir de 1969, quando chegou aos 35 anos. Mas ele seguiu forte: foram 44 home runs naquela temporada, 38 em 1970, 47 em 1971 e 34 em 72. Neste momento, ele já havia passado Mays e se tornado o segundo maior rebatedor de home runs da história. Estava a 40 de Ruth. Salvo uma grave lesão, o recorde ia cair.
Quando a ficha cai, Aaron se transforma em alvo dos mais diversos ataques racistas. Cartas e mais cartas chegavam, várias com insultos e até ameaças de morte. Algumas não se limitavam a jogar uma ameaça vazia no ar, mas também indicavam em que dia e jogo que ocorreria o assassinato. Mesmo torcedores dos Braves, desde 1966 jogando em Atlanta, faziam parte dos ataques. Nenhuma surpresa considerando o cenário no sul dos Estados Unidos, região onde se concentra a maior parte da torcida do Atlanta Braves e até hoje local com problemas raciais profundos.
O clube passou a registrar seu craque com nomes falsos em hoteis para enganar potenciais agressores ou assassinos. Além disso, ele passou a ser acompanhado por seguranças. Ainda assim, o Atlanta Journal chegou a escrever um obituário* de Aaron, já considerando que o atentado poderia ocorrer.
* Obituário: texto sobre a trajetória de uma pessoa famosa ou importante publicado quando ela morre. É comum veículos deixarem obituários prontos quando alguma figura importante pode morrer a qualquer momento, normalmente por doença grave
Apesar de todo esse clima, a temporada de 1973 é fantástica para Aaron. Ele rebate 40 home runs, empatando com Ruth. O novo recorde ficaria para 1974. Por isso, sabia-se que a abertura da temporada, contra os Dodgers. Jimmy Carter, governador da Geórgia na época, foi ao jogo presenciar o momento histórico.
O home run do recorde veio na quarta entrada. A torcida dos Braves festeja, claro. Apesar de tudo, os bons ainda são maioria. Ao pisar no home plate, Aaron recebe um abraço forte de Estella, sua mãe. Mais tarde, ela disse que não abraçou o filho para parabenizá-lo ou para dar um carinho no momento de glória, mas com medo que algum atirador aproveitasse o momento para agir. Aaron também não conseguia separar a alegria pelo feito esportivo de todo o contexto racial que esteve em torno de sua perseguição ao recorde, e a sensação de alívio pelo fim daquele processo -- e potencialmente das ameaças -- era tão forte quanto a satisfação profissional.
Aaron rebateu mais 19 home runs naquele ano. E mais 12 em 1975 e 10 em 76. Enfim a idade chegou. Encerrou a carreira com 755 home runs, marca só superada por Barry Bonds por meio de uso de doping, e 2.297 corridas impulsionadas e 6.856 bases totais, ainda hoje recordes da MLB. Foi selecionado para 25 All-Star Games consecutivos.
Terminou a carreira como o maior nome do esporte de Atlanta, de longe (mesmo na comparação com mitos como Dominique Wilkins e Evander Holyfield). Ele também chegou a ser ranqueado como o maior atleta do esporte do Wisconsin, à frente até de Kareem Abdul Jabbar, Aaron Rodgers e Brett Favre.
Também engajou-se na questão racial, até usando sua experiência pessoal como exemplo do que ocorria com negros nos Estados Unidos. Inclusive, manteve guardada todas as cartas de ódio que recebeu ao longo da carreira, para nunca esquecer tudo o que passou. Não à toa, Muhammad Ali, provavelmente o maior símbolo mundial de união de desempenho esportivo de altíssimo nível com engajamento social, chegou a dizer que Hank Aaron era a única pessoa pela qual ele tinha mais consideração do que por ele próprio.
Hank Aaron faleceu na última sexta, dia 22, aos 86 anos. Seu legado vai muito além do Atlanta Braves e da MLB. Atlanta Falcons (NFL) e Atlanta United (MLS) decidiram retirar seu número, o 44, por um ano como reconhecimento do que Aaron fez pela Geórgia. E os Estados Unidos perderam uma figura que deu seu melhor ao país, mesmo quando muitas vezes recebia de volta o pior.
Fonte: Ubiratan Leal
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