O jiu-jitsu feminino existe fora de SP e RJ e se chama Joaquina Bonfim, 9ª no ranking da Confederação Brasileira
Há um tempo, recebi nas minhas redes sociais uma solicitação de mensagem exatamente assim: “Gostaria de fazer uma sugestão de pauta, pode ser? Você guarda e avalia se é possível escrever sobre o tema. (...) Trata-se de uma atleta nordestina que é contemporânea de várias gerações. Chamamos ela de 'Highlander'. Pode ser, talvez, uma das atletas mais longevas a atuar no circuito da faixa preta adulto. Trata-se da Joaquina Bonfim”.
Essa pessoa me deu a sugestão por alguns motivos. Dentre eles, o primeiro: Joaquina é nono lugar do ranking da Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu (CBJJ) entre as faixas pretas adulto, embora sua categoria real seja máster.
E além disso, porque ele me levou a um texto ótimo de Joaquina no Linkedin que você pode ler aqui.
Antes de escrever, de fato, quero manifestar meu real interesse em falar sobre mulheres de outros estados. Temos tantas mulheres faixas pretas espalhadas por aí, umas que competem mais, outras menos, mas todas muito importantes para o cenário não só feminino, mas do jiu-jitsu como um todo. Não vamos esquecê-las. Às vezes pecamos (eu peco) e vejo que poderia (mos) fazer mais. Façamos mais! Os patrocinadores devem fazer mais, os atletas devem fazer mais e, também, a mídia deve fazer mais. Estou planejando citar novas histórias aqui nas próximas semanas. Podem me enviar sugestões que acharem importantes. Continuando...
Lá vou eu saber mais sobre a história de Joaquina e me deparo com muitas coisas, entre elas uma mulher incrível e batalhadora, que luta diariamente dentro e fora dos tatames para se manter no topo e se destacar. Joaquina é faixa preta e, atualmente, treina na Gracie Barra de Pernambuco.
Ela treina há quinze anos e conheceu o jiu-jitsu por meio de uma amiga, mas contou que sua relação com o esporte vem de muito antes. “Vem desde a infância. Experimentei várias modalidades ao longo da vida. Da natação ao handebol. Do futebol ao voleibol. Mas nas lutas, realmente encontrei uma das minhas principais vocações.”
Joaquina é faixa preta há oito anos e compete desde a branca. Porém, contou, também, que lá onde mora, sempre enfrentou problemas desde a faixa azul pela falta de adversárias em sua categoria, o que fez com que ela se adaptasse em vez de desistir.
"Por me sentir capaz de enfrentar desafios e começar a me habituar com a adrenalina e o clima de competição, passei a buscar maneiras possíveis de participar de torneios e campeonatos fora da minha cidade natal, para testar minha própria aprendizagem. Já nessa época, comecei a ter problemas com a visibilidade da presença feminina no jiu-jitsu e, involuntariamente, percebi que incomodava muitos graduados. Lido com esse tipo de reação adversa há muitos anos".
Ela diz que, conforme a faixa foi escurecendo, em vez de as pessoas a ajudarem, muitas foram se afastando, principalmente os homens. Ela diz que "muitos homens, apanham seus copinhos com água, suas mochilas e saem dos treinos com a expressão fechada em gesto de descontentamento quando, eventualmente, encaram uma posição mais forte com uma faixa preta competidora" - e completa - "Ou então, adotam um ímpeto 'kamikaze' quando precisam de uma autoafirmação e assumem o risco de machucar uma colega de treino e até de se machucar sem necessidade. Atualmente, ainda são esses os espinhos mais amenos do cotidiano."
Porém, sua maior dificuldade ao longo dos anos é ter que sair de sua cidade para enfrentar longas viagem, custo do próprio bolso e muito cansaço para poder competir. Muitas vezes, ela conseguia ajuda financeira e hospedagem com amigos, mas muitas outras, não.
Joaquina, além de tanta luta, ainda teve a humildade de destacar o quanto se inspirou em faixas pretas da velha guarda, tanto como nas que vieram surgindo quando ela já lutava e, mais ainda, nas da nova geração. Cita, também, que procura renovar seu jogo a cada dia, assistindo às lutas delas, para cada vez mais mostrar o que é que o Nordeste tem.
"Tenho imenso respeito por todas elas. Nelas me motivo, sempre buscando melhorar para poder representar a parcela feminina (e do bom Jiu-jitsu) de minha cidade, meu estado, minha região".
E é claro, ela contou que alguns amigos do jiu-jitsu a chamam de Highlander, como já citado no início da matéria, e que leva o elogio com uma grande satisfação. Além disso, manda a letra: "O Jiu-jitsu quer que a gente desista, em todos os sentidos. Aí está o cerne, a essência, o princípio da arte-suave. E o que é que a gente faz? Recomeça e recomeça, procurando evoluir sempre!"
Em relação a sua colocação no ranking da CBJJ, ela também comenta e destaca o quanto sente orgulho por ser uma atleta faixa preta pernambucana a ocupar o "G-10" e confesso que, no particular, ela me disse que pretende bagunçar muito na categoria adulto em 2018 (arretada demais).
"Ainda que eu também possa lutar na categoria Master, me sinto em plenas condições de seguir lutando na adulto por um bom período de tempo. Lutando na adulto, posso pleitear a bolsa atleta, concedida por lei estadual no meu estado, Pernambuco, mediante à devida qualificação. Direito do qual não abro mão. Visto que a bolsa atleta é um grande suporte à minha batalha, que é a de “Lutar para Lutar”, e seguir lutando".
Seus objetivos dentro do jiu-jitsu são muitos, entre eles continuar competindo e incentivar cada vez mais a bota prática do esporte, elevando-o a outros patamares. Ela tem a ideia de que o amadorismo é completamente prejudicial e conta que, infelizmente, no Nordeste do Brasil, ainda vemos pessoas confundindo o esporte com briga de rua.
"Tenho muitos planos no Jiu-jitsu, para o Jiu-jitsu e a partir do Jiu-jitsu. Encaro como um desdobramento natural de minha trajetória poder lutar no Pan Americano e no Campeonato Mundial na Califórnia e também em edições futuras do ADCC, entre outros eventos de lutas casadas. A profissionalização do Jiu-jitsu é possível. E sei que posso e vou participar desse processo de mudança".
E essa mulher arretada segue, também, tendo a intenção de levar o jiu-jitsu para níveis escolares e educacionais e, por conta disso, também concilia seus treinos diários com a sua graduação em Educação Física. Dentro de sua rotina, ainda cabe um treino de boxe e preparação física, mas como o dia só tem 24h, Joaquina vira e mexe precisa abrir mão de alguma atividade para conseguir cumprir seu calendário esportivo e também seu dia-a-dia. E tem mais: ela também treina MMA e falou um pouco sobre.
Joaquina contou que sempre gostou muito do MMA mas que, infelizmente, em seu estado, a vaidade e insegurança de muitas pessoas atrapalham que a modalidade seja expandida. Dias atrás, a atleta Gabi Garcia, que tem lutado no Rizin e enfrentado muitas polêmicas em relação a suas adversárias, citou, em uma entrevista, que aceitaria uma luta com Joaquina. Por vontade própria, nada programado e ela simplesmente citou.
"Tenho lidado com a possibilidade de uma estreia no MMA há vários anos. Passei cinco anos competindo no boxe nacional em alto nível e há muito, iniciei minha experiência com MMA, conciliando a parte de boxe e a parte de chão. As especulações em relação a um luta com Gabi Garcia e outras peso-pesadas acompanham nossos passos há anos. Fico contente que haja essa menção recorrente. Tenho dito que a categoria existe. É fácil verificar. Hoje, há no mínimo dez atletas prontas para o confronto na categoria das pesadas. Resta aos organizadores, promotores, matchmakers se apresentarem de forma devida e formatarem uma proposta clara, objetiva, equilibrada, profissional, consistente, adulta."
Portanto, enquanto não houver nenhuma proposta decente no MMA, nada feito e seu planejamento no jiu-jitsu segue; e ainda que seja feito algum tipo de negociação, a atleta destaca: mesmo com uma estreia no MMA para 2018, minha maior contribuição, hoje, é com a consolidação de meus desafios no jiu-jitsu. Mesmo lutando MMA, seguirei expandindo a presença feminina (pernambucana e nordestina) no Jiu-jitsu. Assumi um notório protagonismo na modalidade e já tenho um lugar na história do Jiu-jitsu na região.
Um parêntese: é importante lembrar que Joaquina não tem um lugar na história só da região e sim, do Brasil e, quiçá, em nível mundial, porque quem pesquisar profundamente a história do jiu-jitsu, de fato, conhecerá a história de Joaquina em algum momento.
Algo muito importante que Joaquina citou em nosso bate papo foi a experiência que ela tem com o jiu-jitsu e como ela o observa hoje na sociedade e é algo que acho que vale a pena disponibilizar na íntegra, porque ela faz uma análise bastante esclarecedora em relação à diferença entre homens e mulheres no jiu-jitsu e a importância da representatividade no meio.
"Já vivenciei muitas situações no Jiu-jitsu. Conheço a experiência do Jiu-jitsu em comunidades com crianças carentes e jovens em conflito com a lei, já conduzi aulas em projetos sociais e conheço o Jiu-jitsu de zona sul, com o público universitário e com executivos, profissionais liberais. Independentemente das novas "roupagens" que se dê ao Jiu-jitsu, uma das minhas maiores missões nesse universo é ajudar a elevar o Jiu-jitsu a outros patamares, principalmente entre as mulheres. Observe que, atualmente, somos cerca de 163 mulheres faixas pretas no ranking da CBJJ/IBJJF em comparação aos mais de mil faixas pretas homens. Significa que, na hora da largada, na faixa branca, a proporção é de aproximadamente dez homens para uma mulher. A cada cinquenta homens que começam na faixa branca, cinco mulheres começam. Quantas mulheres chegam à faixa preta, em média, seis ou sete anos depois? Por isso, nosso trabalho é árduo. Chega mesmo a ser desigual. Portanto, quando nós aparecemos, não representamos apenas a bandeira A ou B. Representamos todas as mulheres que um dia já treinaram ou tiveram vontade de treinar Jiu-jitsu".
Portanto, podemos dizer que Joaquina, além de grande guerreira, é uma pessoa íntegra, inteligente e, acima de tudo, absurdamente humilde. Com isso, ela deixa um recado para as mulheres do esporte, com uma pitada de crítica construtiva em relação à diferenciação entre jiu-jitsu masculino e feminino e lembrando o triste machismo que há no meio.
"Cultivem junto aos mais jovens, ensinem aos alunos e alunas iniciantes o bom hábito dos três tapinhas e a capacidade de agradecer aos colegas de treino (que se dispõem a abrir mão de seu tempo para treinar, muitas vezes enfrentando dupla ou tripla jornada de trabalho e estudos). Encarem o Jiu-jitsu como Jiu-jitsu. Não entrem na pilha mal descrita de que haja um Jiu-jitsu feminino. Para mim, é um equívoco taxar o jiu-jitsu como 'feminino' ou 'masculino'. Sei que se trata apenas de uma força de expressão. Mas essa divisão mais atrapalha que ajuda. Isso não quer dizer que não se organizem turmas para homens e turmas para mulheres (é sempre válido! Ajuda no processo de aprendizagem. Sou entusiasta de turmas exclusivas para mulheres. Potencializa muito o processo de desenvolvimento). Mas é fundamental que apontem sempre para a integração em turmas mistas (mulheres e homens). Posso dizer, contudo, que ainda na atualidade ocorre muito preconceito com aquelas mulheres que vão além da participação mediana nos tatames. Jiu-jitsu é Jiu-jitsu. A arte de ensinar "suavemente" o que pode ser brusco e muitas vezes tortuoso e traumático. Fazer Jiu-jitsu, treinar Jiu-jitsu, lutar Jiu-jitsu, viver Jiu-jitsu nunca foi algo fácil. Principalmente em estados historicamente machistas como o Nordeste do Brasil".
E tem recado para os homens também:
"Vale também um recado aos meninos para não ser injusta: garotos, aprendam que mulheres num tatame podem trazer a possibilidade de aprimorar com alguma técnica o que muitas vezes se aprende com força máxima e muita truculência".
Sinceramente, eu teria muitas coisas para falar, mas só tenho a agradecê-la por tudo o que fez e ainda faz pelo jiu-jitsu e, também, por tantas histórias contadas fora de um e-mail de entrevista. Poderia dizer muito mais coisas dessa arretadas, mas só tenho mesmo a agradecer.
Isso tudo de uma mulher que leva o esporte a sério e como estilo real de vida (ou raiz, como está na moda): JOAQUINA BONFIM.
Para conhecer mais sobre a atleta, visite seu site aqui e também seu Instagram.
O jiu-jitsu feminino existe fora de SP e RJ e se chama Joaquina Bonfim, 9ª no ranking da Confederação Brasileira
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