Devemos evitar comparações do futebol feminino com o masculino, mas devemos ainda mais respeitar
O futebol feminino tem crescido cada vez mais e estamos diante da maior Copa do Mundo da modalidade, um evento que vem se superando em termos de audiência, visibilidade, público, valores, interesse, exposição na mídia etc. Não é uma modinha como o filme da Barbie neste meio de ano, já temos sim um esporte bem consolidado, com milhões de praticantes e fãs no mundo todo. A Fifa, espertamente, tem investido mais no futebol feminino. Não só por razões comerciais, mas para firmar a modalidade mesmo como a preferida da maioria da maioria das pessoas do planeta (as mulheres). Os Estados Unidos, maior economia do planeta, já têm esse olhar para o futebol feminino faz tempo, mas hoje vemos de verdade a globalização do esporte e o desenvolvimento dele.
As nações europeias, tradicionalmente boleiras, cresceram bastante no feminino e rivalizam hoje com as norte-americanas (incluo aqui o Canadá). Vemos bons times na América do Sul (sobretudo o Brasil) e na Oceania, anfitriã da atual edição. As ligas estão mais fortes, os patrocinadores estão mais presentes, a mídia está mais aberta e o mercado está cada vez mais favorável e convidativo para as causas das mulheres. E o futebol está mesmo deixando de ser apenas uma causa para elas. Foi-se o tempo em que a modalidade era proibida ou malvista, especialmente em alguns lugares mais preconceituosos. Os latinos, por exemplo, demoraram mais para aceitar o futebol feminino, creio que isso se deve a uma cultura mais machista, a que vemos ainda aqui ou acolá em comentários do tipo “mulher não tem que jogar bola”.
A popularização do futebol feminino passa por um envolvimento maior de clubes tradicionais e de federações poderosas, nacionais e internacionais. No Brasil, até por regra, as principais camisas do país tiveram que destinar verba para a montagem de equipes femininas. Ter uma liga regular é o básico para a consolidação do esporte. Sem competição, não há desenvolvimento. Hoje, nós já temos torneios diversos, incluindo a base, embora ainda com um calendário tão ou mais confuso e problemático do que o que vemos no masculino. E é nesse ponto que quero tocar aqui neste post: as comparações recorrentes do futebol de homens e o de mulheres. Claro que são coisas bem diferentes, afinal homens e mulheres são bem diferentes, os corpos são diferentes, a velocidade é diferente, a potência é diferente, a força é diferente. Isso já vemos em praticamente todas as modalidades esportivas (algumas permitem uma “igualdade” maior). Mesmo com um investimento pesado ou desenvolvimento grandioso, as mulheres não vão ter, naturalmente, as mesmas condições para alcançar marcas dos homens (veja os recordes do atletismo para perceber a diferença).
Eu entendo alguém não gostar muito do nível apresentado pelas equipes femininas. Quero acreditar que bastante gente está, desde a infância, acostumada a acompanhar o futebol masculino, e apenas por isso custa um pouco a aceitar algumas jogadas que parecem mais amadoras. E, convenhamos, especialmente no futebol local, longe da nata europeia da bola, assistimos mesmo no masculino a muitas peladas e lances de churrasco. Como somos apaixonados por nossos times, vemos os jogos mesmo sabendo que são ruins, que os jogadores são meia boca etc. Essa paixão já está passando para os clubes no feminino, afinal as maiores torcidas estão representadas hoje em campo. Vimos nas últimas décadas a mudança de bastão de times históricos, como o Saad, para o domínio dos clubes de massa, como o Corinthians. E vemos cada vez mais essa paixão em termos de seleções, com a expansão da modalidade e um equilíbrio maior de forças. A Copa do Mundo está maior e mais atraente mesmo, com jogadoras de grande nível e com treinadoras também de excelente trabalho (sou particularmente fã de Sarina Wiegman, técnica holandesa que já foi campeã europeia com seu país e que reina agora na Inglaterra).
Eu entendo alguém ser apaixonado demais por futebol feminino, até pela luta e pela resiliência de muitas das pessoas envolvidas na modalidade, quase sempre à sombra do masculino. Toda forma de apoio ao esporte é válida, seja financeiro ou mesmo de espaço na imprensa. Isso vale para o futebol feminino e também para outras modalidades que querem ser lugar ao sol, seus 15 minutos de fama que seja. Tenho várias colegas que estão na cobertura da Copa, do outro lado do mundo e aqui, e estou feliz demais por elas. Percebo bem como isso é uma realização de um sonho, não só o pessoal de trabalhar em um grande evento internacional, mas por estar fazendo parte da história, por estar ajudando a difundir uma modalidade que por tanto tempo ficou em um quinto plano.
Pela primeira vez, vi minha filha Ísis (hoje com 13 anos) com o rosto pintado e acordando cedo nas férias para ver o jogo do Brasil com a priminha Rebeca. Estavam animadas como poucas vezes vi e logo passei para elas o aplicativo oficial do Mundial para elas colecionarem o álbum de figurinhas do torneio. Minha filha, que antes brigava para ter o Neymar, o Messi e o Cristiano Ronaldo em seu álbum, agora tem boas referências femininas para seguir e curtir. As novas gerações já estão sendo criadas em um ambiente muito mais receptivo ao futebol feminino. Legal que elas saibam da dificuldade que até uma Marta, Rainha do futebol, enfrentou para ter sucesso na carreira. Mas mais legal ainda elas verem que hoje que a Ary Borges, com seus 23 aninhos, já pode sair do Centro Olímpico para o Sport, para o São Paulo, para o Palmeiras e para a bem-sucedida liga norte-americana. Autora de um hat-trick na estreia do Brasil, Ary Borges deu lugar para Marta no final da partida, algo bastante simbólico neste Mundial.
Com o tempo, vai ser inevitável que mais pessoas curtam o futebol feminino e que mais gente largue seus preconceitos para se divertir com a modalidade. Assim como as mulheres estão cada vez mais altas, mais fortes, mais rápidas, mais habilidosas, mais independentes, mais destemidas, mais corajosas, mais confiantes, mais protagonistas, mais endinheiradas e mais empoderadas, o futebol feminino está cada vez maior e melhor. Eu quero fazer aqui uma menção especial à minha amiga Renata Silveira, primeira narradora em TV aberta no país a trabalhar em uma Copa do Mundo. Eu já dividi transmissão de jogo em televisão com 36 narradores diferentes, e ela é uma das melhores, tem uma excelente voz, estuda e se prepara demais para os jogos e possui um bom ritmo, passa sim emoção até em partidas chatas e pouco interessantes de futebol masculino. Sei o quanto a Renata deve estar sofrendo com críticas e ofensas terríveis oriundas puramente do machismo e da estupidez de algumas pessoas, mas que ela siga firme e forte, bailando em seu trabalho como de costume, para incentivar ainda mais outras narradoras e outras mulheres a ter seu espaço, a estar no lugar em que desejam estar, a fazer e jogar o que mais gostam.
Boa Copa do Mundo feminina para todas as pessoas, não importa o gênero, a idade, a orientação sexual, a raça etc. Desfrutem!
Devemos evitar comparações do futebol feminino com o masculino, mas devemos ainda mais respeitar
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